Seria com certeza o sítio mais inusitado para observar uma avozinha indigente. Estavamos ainda meio ressacados, algo contrariados por uma sexta-feira extenuante e algo insípida. Propus uma ida até Cascais, apanhar algum Sol naquele lugarejo finório, onde nas primeiras fases da minha adolescência me divertir a valer, como só um adolescente imberbe seria capaz.
A inaptidão de poucas horas de sono não abonavam a favor da nossa boa disposição e estava sempre presente um pouco de humor negro a pairar no ar, de diálogos cortados e sem grande lógica. Apenas piadas descoordenadas e algo patéticas que nos faziam rir. Arranjar um restaurantezito para almoçar foi meio complicado, e os nossos óculos de Sol escondiam umas olheiras mais ou menos antipáticas. E ali, mesmo enfrente à amostra de marina, refastelados à mesa enquanto comíamos qualquer coisa sem grande prazer, reparei na velhinha negra, de luto e de caruma ou sujidade.
Aquela imagem bateu-me forte, como sempre as imagens dos alienados sociais. Não por pena, não por esses sentimentos patéticos de desprezo, nojo, ou misericórdia. Fico apenas sentimentalista ao imaginar que aquele ser humano, agora uma imagem esfarrapada, foi algures no tempo e no espaço, alguém capaz de ter um raciocínio lógico e talvez de se expressar e conviver como eu. Mas algures na viagem, ouve um trajecto errado, um atalho perigoso, um desnorte momentâneo que levou a uma espécie de beco sem saída em que se passou a residir.
Na cara as rugas encavalitadas escondiam uma percepção da idade da anciã, que apesar de magra e de movimentos lentos, não aparentava a agonia dolorosa de tantos idosos. Apenas o negrume da sujidade transformava a sua pele, como se fosse um mineiro de carvão coberta de uma folijem de grafite. Adormecia junto aos sempre presentes sacos plásticos, um depositório de bens, um conjunto de sacos de pertences de quem tem o céu como tecto.
Nas suas mãos afagava uma pombinha, ainda mais magra e coberta de negritude quase mais nauseabunda, mostrando um carinho enternecedor por aquela decrépita ave.
Era uma vez uma velhinha e a sua pomba, e pareciam felizes.