Recebi há dias um colega inglês que, vagamente conhecedor da situação portuguesa, esperava encontrar o país em alvoroço.
Quando verificou que nada disso se passava ficou verdadeiramente intrigado. Expliquei-lhe que o meu salário tinha sido cortado em 30%, que esse corte tinha sido superior para alguns colegas, que vários outros estavam a ser despedidos, etc. O seu espanto foi então redobrado: “Como é possível que não existam manifestações, greves contínuas, etc.? Por que razão está a universidade a funcionar normalmente?”
Este espanto diante da situação portuguesa é genuíno. Não passa um dia sem que leia na imprensa ou ouça de viva voz o elogio de algum responsável político europeu à peculiaridade da nossa situação: Portugal é verdadeiramente excepcional porque tem conseguido manter a ordem e a paz social. O contraste com a agitação popular na Grécia é enorme. Mas não deixa de ser também assinalável a diferença da situação portuguesa face à turbulência social a que se assiste já em Itália ou em Espanha, por exemplo.
Será difícil negar que a ordem e a paz social até agora existentes acabam por ser benéficas para o país. Mas por que é que as coisas se passam assim entre nós? Aquilo que os responsáveis europeus não sabem – e os nossos governantes fazem de conta que não sabem – é que a ordem e a paz social resultam de um aspecto especialmente negativo, de um “mal” que de há muito afecta a sociedade e a democracia portuguesa. Ainda no passado fim-de-semana, numa conferência no Porto, a politóloga Marina Costa Lobo chamava a atenção para isso mesmo, recordando a debilidade da participação política, convencional e não convencional, no nosso país, por comparação com o que se passa nos outros países europeus. Entre nós, a atitude de desconfiança face à política é enorme e a apatia estende-se também à participação cívica num sentido mais alargado.
Diante da crise e das medidas tomadas pelo Governo, muitas vezes de forma arbitrária e injusta, face ao empobrecimento de muitos e ao enriquecimento de alguns, face à venda ao desbarato dos nossos melhores activos, à destruição do tecido empresarial, à transformação do Estado social numa instituição assistencialista, e por aí adiante, que fazem os portugueses? Cada um procura tratar de si e sobreviver, no silêncio e, por vezes, na vergonha. A política e a acção cívica parecem-lhes algo demasiado longínquo. Preferem sofrer em privado do que contribuir para uma mudança na esfera pública.
Assim, os bens da ordem e da paz social são, em última instância, uma consequência da nossa desconfiança face aos outros, do atavismo secular, do alheamento face à política, da famosa “falta de civismo”. São, forçando um pouco a frase, bens que vêm por mal.