Parte I – O dopado
Quando o meu voo terminou e senti aos meus pés a agora diferente sensação de pisar terra firme, algo estava em êxtase na minha mente. Todo aquele cansaço e prostrações do quotidiano tinham-se eclipsado.
Por estranho que pareça não seria a adrenalina pulsante nas veias que me estaria a roubar o periclitante juízo que me resta. Era uma enorme alegria, um fulgor de concretização que nos enche o coração em ocasiões raras. Como se tivesse quase tocado o Divino, elevando o meu estado de consciência, que transbordava.
Ainda perfeitamente nas alturas, a torrente de pensamentos gerados por esta experiência não parava, e sei hoje que a vertigem de repetir na hora a façanha era tão grande que não teria qualquer tipo de auto-controle.
Foi neste estado de graça que desci a colina sinuosa a mais de 100 km/h, fazendo gritar os pneus e disparando continuamente o sistema anti-derrapagem. Estava embrutecido nos movimentos, e felizmente apercebi-me a tempo que já não era um ser alado. Queria partilhar tudo aquilo, mas ausência de palavras e a comoção, e muito provavelmente aquele brilho nos olhos algo alienado, não me tornaram num bom narrador. Já me queimava o telemóvel na orelha, e fui até a casa de C. que oferecia mais um excelente jantar, com N., S., e mais gente do Sá Carneiro . Não consegui comer, nem era capaz de deixar de sorrir. Eléctrico tinha mais visitas por fazer, minhas pernas eram molas, minhas asas ausentes ainda não apresentavam sinais de dormência.
Fui ter com os amigos do Passado, ainda high. Foi um bom resto de serão. Contudo quando chegou a hora de dormir, dei-me conta que ainda estava dopado pela mais poderosa de todas as drogas: a alegria de desfrutar a Vida.