Os dias em que o mundo parou
3 . Pintando o arco-íris
Quando a porta permanecia fechada a sete chaves e os dias teimavam em se repetir em clausura, a vida continuava. Para minha grande surpresa, viver fechado podia não ser assim tão mau. Junto das almas que mais amo, não me faltava o que de verás é o mais precioso podemos possuir: amor.
Preocupando-me no entanto com as notícias calamitosas acerca do alastrar do bicho, com a economia e o ganha-pão do nosso lar não podia respirar paz. Às vezes à noite acordava sentindo-me preso num pequeno pesadelo que afinal era a realidade. Talvez o que me prendia mais o peito era a segurança dos meus pais e dos meus sogros que não víamos nesse período. We are all going to die someday. Era talvez a ideia recorrente que me trazia a insónia insidiosa daqueles dias.
Não foi fácil enquadrar todos os pensamentos que me corriam na cabeça, a forma descabida de estar desocupado. Felizmente nós humanos, muito embora sejamos animais de hábitos, somos também muito versáteis. Estava já em contacto diaria via telemóvel com os meus amigos mais chegados, numa forma, qui çá, de entreajuda de comunicação e desabafo à distancia – memes, longos diálogos. piadas e pornografia q.b. . Já que não conseguia correr do outro lado da porta, dei por mim a fazer um plano de crossfit caseiro bem austero para manter a forma física. Quanto à mente aumentei a dosagem da meditação e fui mergulhando aos poucos no fascinante muito espiritual budista, algo que me deu ferramentas concretas de combate mental pandemia. Em particular o budismo tailandês da tradição da floresta, ouvindo os ensinamentos da Ajahn Chan e Ajahn Brahm que começaram a ser regulares nos meus headphones enquanto fazia as tarefas domesticas.
Logo depois tive a incumbência de pela primeira vez me aventurar além portas, buscar viveres que não chegavam pelas entregas ao domicilio. Isso e ir comparar mascaras e desinfetantes, algo que hoje já faz parte do nosso novo normal, mas que na altura ou estavam esgotados ou eram vistos como aberrantes. Colocar o pé no corredor fora de casa e calçar-me tentando não tocar em nada, além de me deixar semi-aterrorizado era de facto estúpido. O Estado de Emergência estava prestes a ser decretado nessa altura e quando peguei no carro e ver as ruas ainda cheias de gente, desprotegidas e sem distancia social pareceu-me algo saído de um livro do Stephen King, mas com esteroides. No supermercado, já com muitas prateleiras vazias mas sem máscaras sentia um pavor que nunca tinha sentido antes. Ainda para mais a minha cidade liderava o top de casos positivos. Quanto regressei a casa, e me despi depois depois de me encharcar de álcool para de seguida tomar banho fiquei com a sensação que aquilo não era um estilo de vida decente e que ninguém podia viver assim muito tempo.
Enquanto as crianças pintavam arco-íris com as inscrições de vai ficar tudo bem, eu senti uma amalgama de emoções. Pensar positivo faz bem, mas a realidade não é escamoteável. Não deixariam de haver mortos, doentes, empregos perdidos, e todo uma parafernália de comportamentos diferentes. Mas colocar à janela esse desenhos coloridos dá um sentido de comunidade de que não enfrentamos sozinhos estes tempos diferentes, mas sim em pé de igualdade com todos. E fazer parte de um todo é sempre mais fácil, mesmo que a mensagem de esperança fosse enganadora.