Dias

Por vezes somos confrontados com situações na nossa vida que nos fazem reflectir na importância da vida em si.

Esta semana tem sido particularmente fértil de lições de vida que me mostraram que 99,9% dos problemas que nos afectam diariamente não passam de melodramas singelos e enredos de telenovelas medíocres. Para
Muitas vezes passam ao nosso lado personagens banais, transeuntes normais da vida, pensamos nós. Mas quem sabe essas pessoas lutam diariamente com batalhas perdidas e mesmo assim não deixam que o sofrimento os abata.

Sinto-me até envergonhado de por vezes achar que não tenho sorte, ou que nem tudo me possa correr bem, quando sou confrontado com exemplos de miséria e ausência de esperança tão pesados. Tudo se torna relativo, inútil e inconsequente logo que entramos em contacto com o sofrimento a que se assiste numa enfermaria pediatrica. Parece que o conceito de justiça se desvanece no ar. Esfuma-se no ar toda a fogueira de trivialidades. Só fica o importante.

Enquanto lá fora a brisa atenua o calor do estio, o meu filho dorme no meu colo.
Sinto a cara queimada do sol que apanhei durante a manhã e deleito-me com Detectives Selvagens de Roberto Bolaño que apesar de ser demasiado denso para as férias vou lendo com enorme sofreguidão. No ipod ouço o ultimo trabalho dos Hot Chip e faço horas que a minha cara metade volte das compras para lhe dar um beijo apaixonado e a convide para vir a piscina com a nossa princesa que de certeza vai pedir novamente que eu faça de golfinho. Se sobrar tempo antes de jantar vou correr uns rápidos 7 quilómetros à volta do cemitério e da Igreja. Enfim férias em Agosto no seu melhor!

Os donos do Pingo Doce quiseram esfregar-nos na cara o nosso egoísmo, a nossa venalidade, a tremenda distância que nos separa dos outros, desde que de permeio esteja o nosso umbigo. Quiseram fazer-nos provar a gordura cobarde que temos em vez de músculo; explicar-nos, muito devagar, como se fossemos imbecis, que nada nos custa pisar as vidas dos vizinhos desde que seja para alcançar couratos a metade do preço. E conseguiram. Anunciaram primeiro que iam obrigar os seus trabalhadores a laborar no feriado do 1.o de Maio.

Quando alguma polémica eclodiu, sujeitaram a referendo nacional a solidariedade da manada tuga: “E se vos déssemos um desconto jeitoso, ainda ficariam do lado dos oprimidos, ou correriam por cima deles para agarrar vinho em saldos?” O resultado viu-se ontem pelas nossas ruas: milhares a encher bagageiras com os despojos dos direitos dos outros.
Nas declarações de rapina, o gáudio cheirava-se à légua: “Podemos registar o entusiasmo e a euforia dos nossos clientes, que precisam de campanhas como esta.” Como precisamos, foi só assobiar para nos pormos de cócoras, orifícios lubrificados pela nossa própria cupidez.

Pouco depois, quase todas as grandes superfícies comerciais decretavam, à força de intimidação, a morte do 1.o de Maio. Mais um capítulo na história da infâmia em que vamos dando razão ao ditador que nos baptizou como “uma nação de cobardes” – acrescentámos ontem a palavra que faltava: “Glutões.”

Crónica de Luís Rainha publicada no i