fun

A principio é simples, anda-se sozinho
passa-se nas ruas bem devagarinho
está-se bem no silêncio e no burburinho
bebe-se as certezas num copo de vinho
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo
diz-se do passado, que está moribundo
bebe-se o alento num copo sem fundo
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E é então que amigos nos oferecem leito
entra-se cansado e sai-se refeito
luta-se por tudo o que se leva a peito
bebe-se, come-se e alguém nos diz: bom proveito
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja
olha-se para dentro e já pouco sobeja
pede-se o descanso, por curto que seja
apagam-se dúvidas num mar de cerveja
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

Enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar, sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida

E entretanto o tempo fez cinza da brasa
e outra maré cheia virá da maré vazia
nasce um novo dia e no braço outra asa
brinda-se aos amores com o vinho da casa
e vem-nos à memória uma frase batida
hoje é o primeiro dia do resto da tua vida.

Letra de Sérgio Godinho

Nada como um velório para nos recordar que somos efêmeros e que vivemos segundo um a espécie de arrendamento físico cujas assoalhadas tem um prazo de validade restrito mas desconhecido.

Não temo a morte, mas sofro com ela sempre que ela se aproxima um pouco. Não pelos que vão, mas sim pelas dores de quem fica e chora os seus. Ver pessoas que sempre vi bem-dispostas e alegres, encharcadas em Xanax para se manterem minimamente humanas e se refugiarem da dor e um quadro triste e que me revolta.

Depois todas as tradições do enterro, fazem-me sentir as tripas torcerem-se ao limite: todas aquelas flores, velas, cangalheiros, carros funerários, beatas, choros, gravatas pretas, sussurros sociais, estão longe de o que deveria ser uma despedida.

Quando eu bater as botas, quero uma Jazz Band tipo New Orleans, nada de flores e que eu seja rapidamente cremado e minhas cinzas largadas no curso de água mais próximo. O pó  deve regressar pó.

Por vezes deparamo-nos por diante de grandes decisões e fraquejamos, ou pelo menos não optamos pelas melhores opções. Somos feitos de um barro de qualidade, mas que tem as suas imperfeições, razão de sermos meramente humanos.

Percebo mais profundamente que não de deve dar demasiada importância ao que toca a estar errado ou certo, de saber ou ignorar, quando o que tem mesmo peso é se aprendemos, se vimos uma luz mais forte.

Um ser não pode temer de castigos e sobreviver sobe medos de errar ou falhar, mas sim buscar conhecimentos, aprendendo a melhorar os seus passos e acções para que sejam menos imperfeitos. Trata-se de ganhar experiência, e no final – tentar evoluir rumo ao nosso melhoramento íntimo.

Sinto-me como que uma criança que dá os primeiros passos, sofrega e cambaleante, mas insistente. Dá dois passos e estatela-se no chão, chora ou sorri, conforme o impacto, mais eis que em segundos se endireita, cambaleia e espeta mais seis passos rápidos de alegria e moral. Força de viver na sua versão mais pura, na mesma forma que deve ser quando se procura crescer ser ser em altura, ou nas frugalidades do poder mundano.

Hoje estou particularmente irritadiço. Pareço o ser descompassado, muito ao contrário do que me tenho sentido intimamente. É sem dúvida um refluxo passageiro, de uma certa erosão do meu circuito profissional. Espinhos passageiros.

Nada que uns bons momentos de meditação e recolhimento não resolvam num ápice. Ao fim de contas sei-o hoje mais do que nunca que estou profundamente feliz com tudo o que se passa na minha vida.

Não gosto de me torturar. Não tenho vocação de masoquista, nem de vítima. Mas para superar algumas vicissitudes e entraves é necessário reportar as nossas carências e pecadilhos, o fim e exorcizar os nossos demónios da dependência de tóxicos. A humilhação e a partilha das nossa fraquezas e a melhor forma das enfrentar, como nos AA, construindo uma base sólida, um estofo de humildade reconhecendo os erros e a nossa fragilidade.

Eu sou tabagista. Fumo há 15 anos. Comecei a fumar embebido nas atitudes rebeldes de adolescência, mesmo consciente dos riscos do cigarro. Era um hábito social e melhorava a aceitação num grupo, numa perfeita idiotice de conceitos dos late 80s. Viciei-me. Tornei-me dependente de nicotina muito rapidamente, nessa necessidade de sorver ar queimado, repleto de um cheiro nauseabundo que rasga a garganta e brônquios. Sem esse tossir o corpo revolta-se, chamando por mais veneno, e a cabeça com o tique do hábito de mão faz soar todas as campainhas na ausência daquele tirano, envolvido em papel branco e castanho. Cheguei a levantar-me da cama para fumar, e fumar antes do pequeno almoço.

Já tentei várias vezes parar com este vício, sem muita convicção, apenas por umas frustrantes semanas de profundo nervosismo, catatónico, dopado, ansioso. Ressacado. Humilhado. Frágil.

Hoje torturo-me numa última vez. Só quero chegar ao fim do dia sem ter levado um cigarro à boca. Um dos 20 que levava diariamente à boca e acendia maquinalmente como se fosse um acto tão normal como respirar. Estou já a sentir os primeiros ecoares fisiológicos da abstinência, da privação de um toxico há muito embebido no meu organismo que está por isso debilitado. cancro dos pulmõesDurante semanas a coisa vai piorar. Tenho que me afastar de sítios poluídos e locais cheios de suicidas com cigarros à arder. Tenho que deixar também o café, para reduzir a necessidade desses hábitos de simbiose.

Não foram esses anúncios parvos nos maços que me decidiram a tentar a luta diária para deixar de fumar. Todos os fumadores estão cientes dos riscos, mas não têm uma sapatada nas costas com força, um empurrão, um apoio que os acelere para essa libertação da dependência física e psicológica da droga vendida pelo estado. Eu hoje tenho esse empurrão esse apoio, e acima de tudo essa vontade de me libertar antes que o meu sangue deixe de receber oxigénio.

Já chega de alcatrão e monóxido de carbono nos meus pulmões. Já estou farto de ter um ticket para a lista de espera para um cancro do pulmão, de um AVC, de uma angina de peito ou de uma bronquite crónica, numa morte mais próxima e sofredora. Já estou farto de gastar dinheiro num produto que de facto não necessito e apenas piora a minha vida. Já estou farto do odor nauseabundo na minha casa, no meu carro, na minha roupa. Já estou farto de ter o meu olfacto e paladar obstruídos e dormentes. Já estou farto de não ter fôlego. Já estou farto de ser um jogador da roleta-russa!

Estou ainda embriagado por o mais puro dos néctares. O seu sabor escorre ainda lentamente pela minha boca, prendendo o meu pensamento nesse gosto profundo de prazer, plenitude e felicidade.

Estou a beber o néctar dos deuses num cálice trasbordante, capaz de saciar o insaciável, convicto de que nada mais necessito, além dessa ambrósia divina que me transporta ao Olimpo. Que mais posso desejar?

1 – Marés vivas

Com a chuva miudinha de uma manhã fria, tenho a sensação que o verão recebeu uma estocada mortal e está já ausente num céu de tom cinza que prende a luz, devolvendo apenas a claridade pálida.

Abruptamente no inicio do fim-de-semana meus diques transbordaram num manancial de emoções não esperadas e intensas. Não estava à espera por ser atingido por um relâmpago tão ofuscante, seguido dum terrível ribombar ensurdecedor. Os elementos internos entraram numa arrasadora tempestade, numas vagas encrespadas, num vento uivante.

O mar sacudiu-me e mergulhei na profundidade de um abismo negro, onde o salitre da renuncia enegreceu toda a luz que a custo me sustenta. As vagas de uma maré viva revoltada abalaram todos os diques, todos as barras, todos os portos seguros onde me refugio das tempestades, e para meu desespero, toda a negritude fétida das profundezas, das sombras tomaram conta de mim.

O desnorte momentâneo de um marinheiro frágil não se pode repetir como as marés intensas do fim de verão. Ora cheias sugando a terra costeira, ora baixas pondo a nu, o fundo lamacento sempre coberto por mar, essas são as marés de uma tempestade sempre anunciada, sempre natural. E as ondas fortes e intensas chocam com este cristal que se desfaz em mil pedaços logo envoltos em espuma e sugados na corrente.

Esqueci-me momentaneamente que a minha bússola não falha, nem que o meu farol jamais se apagará e por isso as marés são apenas um ponto de passagem de retorno infinito que sempre se repetiram e sempre se repitirão.

Pôr do Sol sobre a igreija de Aldona, Goa

Há já algum tempo que tenho vindo a aproximar-me de uma filosofia oriental, perscrutando o intimo e o espiritual, pressentido mudanças no meu ser e na minha maneira de ser.

Cada vez mais estou atraído pela ideia de ir até ao sub-continente indiano para sentir na pele alguma sensação de espírito mais elevada e menos retorcida pela realidade quotidiana ocidental, no enorme corre-corre instantâneo. Acho que a minha caminhada infrutífera durante muitos anos, da ilusão da vida de deitar foguetes festivos, Life is a cabare, está defenitivamente enterrada e esta num rumo de crescimento emocional e humano.

Depois de rever a América do Sol necessito de dar outro passo, talvez mais brando e profundo para despertar, em mim, a plenitude de um desprendimento maior dos vícios e preconceitos que mancham a nossa existência. Quero abrir ainda mais os meus horizontes, ir até um local da nossa consciência que está velado e adormecido mas apenas deseja ser despertado.
Para não ser demasiado brutal e chocante esta diferença cultural e de valores, antevejo a aportuguesada Goa como destino mais simples para um ocidental não ficar catatónico e sentir toda a força bruta do embate frontal num cérebro ainda acomodado.

Resta-me agora contar os cêntimos, poupando aqui e ali e esperar que as minhas finanças tenham estamina para esta expedição extremamente cara. Falta-me um bilhete para Goa.

Subsisto em grande parte por ter a graça do destino de me brindar com surpresas que me alegram a vida. Sem o antever, num momento ou outro, em que a minha alma se sente mais só, ou mais ansiosa por ardis do momento, sou abençoado por pequenos abalos que me sustentam e fortalecem.

As surpresas que me arremetem, das pessoas que amo e gosto, por vezes gestos simples ou palavras sinceras, por vezes actos generosos e altruístas ou carinhos abnegados, criam em mim uma forte alegria, fé na vitória e vontade de avançar.
Apesar dos desapontamentos que me flagelaram há uns bons meses, tive a sorte de ter anjos-da-guarda atentos que me fizeram um vigília voluntariosa e desinteressada, dando-me a força anímica para me fortalecer e reconstruir os espaços onde antes só haviam ruínas.

Como vigas mestras, essas singelas surpresas ajudam a manter erecto este singelo edifício que vou edificando. São elas cimento, tijolo e betão armado, que me reconfiguram no espaço e na forma.
É verdade que os meus arquitectos e engenheiros nunca se vão entender, na obra que é a minha essência quotidiana sem projecto no papel, nem alvará da Câmara Municipal. Talvez as fundações tenham sido refeitas demasiadas vezes devido às fragilidades anteriores, causando consideráveis atrasos e derrapagens orçamentais. Mas hoje o estaleiro já vai alto, e o fervilhar de obreiros não para.

O estaleiro está completamente anárquico e desorganizado pois sou um péssimo mestre de obras, mas sei que o meu engenho e perseverança conseguirão edificar um pujante e robusto edifício, capaz de suportar abalos sísmicos intensos. Toda a obra está suportada por estruturas sólidas da minha consciência, contando também com a ajuda de reforços e materiais pré-esforçados que sustentarão qualquer abobada megalómana que possa eventualmente decidir elevar. Por isso sei hoje que não serei mais uma Torre de Babel, sujeita à derrocada eminente e a divisão das vontades e línguas ou um gigante de pés-de-barro, sujeito à queda pelo seu próprio peso.

A cabeça estala, o estômago reclama. Anseio por uma retemperante brisa marinha e de meia-hora de silêncio em total comatose afundado nos meus ombros ao Sol.
Depois logo se vê. E estará Lua Cheia…

As despedidas são difíceis. A dificuldade de meter uma desejada pedra no assunto para que aquela situação penosa não se arraste funde-se com a sensação de perda que queremos recusar.

Ontem fui-me despedir do astrólogo inglês, numa noite tórrida, numa esplanada repleta de turistas. De certa forma tendo a tornar-me emotivo demais no que toca a dizer adeus seja a quem for, e tendo em conta que o considero um amigo que tem tido alguns infortúnios senti-me ainda mais com um aperto no coração.
Definitivamente odeio despedidas, não só pela sua significância de partida, de rotura e descontinuidade, mas também pelo embaraço. Não há despedidas alegres, apenas existem despedidas menos dramáticas, onde implicitamente se tenta contornar algum desalento e tristeza com alguma força de vontade.

Mas apesar de dolorosas, todas as despedidas são necessárias pois sustentam a nossa evolução e marcam uma espécie de sombrio enterro que nos ajuda a formar resistência e vontade de seguir novas aventuras. São o necessário marco para interiorizar uma nova ausência física ou metafísica, um reorganizar de sentimentos.
Mas ficará sempre a saudade.

A médica estava exausta e eu ainda mais. A consulta era breve e apenas se destinava a uma breve análise de exames, que se apresentavam regulares sem motivos de preocupação. Eu estava aborrecido de estar já à espera de consulta há mais de hora e meia, e há tinha esgotado todos os métodos de auto-distracção para fazer passar as horas numa sala de espera.

Quando a televisão pública começou a transmissão d`«O menino Tonecas» a minha paciência bateu mesmo no fundo da cave e partiu-se em mil bocados. Nada me pode irritar mais que aqueles sketches sem graça, com gags previsíveis desde a primeira frase. Ao nível intelectual e cultural da maioria da população: um verdadeiro serviço público…

Dez minutos de consulta, 40 euros mais pobre (sem recibo porque com recibo são 50), mais uns quantos placebos aviados. É o país que vivemos…
Juro que este Verão as coisas terão de dar uma grande reviravolta. Nem tudo pode ser a descontracção da falta de iniciativa em que me deixei cair. E a minha caixa de correio dá-me algum alento, talvez mesmo o remédio mais eficaz.

We’re charging our battery
And now we’re full of energy
We are the robots

We’re functioning automatik
And we are dancing mechanik
We are the robots

Ja tvoi sluga (=I’m your slave)
Ja tvoi Rabotnik robotnik (=I’m your worker)

We are programmed just to do
anything you want us to
we are the robots

We’re functioning automatic
and we are dancing mechanic
we are the robots

Ja tvoi sluga (=I’m your slave)
Ja tvoi Rabotnik robotnik (=I’m your worker)

We are the robots

Já o suor me escorre num ardor de Verão
Trabalhando num cubículo fétido
Num velório sem defunto.

Suportando os rigores do assalariado
Contido, sou prédio devoluto
Fundo de alicerces abalados

Pouco futuro, parcas esperanças
Nada que um suspiro possa transpirar
Nada que um olhar possa transparecer
Nada que o cansaço possa vencer.

E é sinal de que a mísera e fútil
Consciência ressequida não é eterna,
Nem noite perdura.
É só o suor desta luta!

Retorcido numa secretária inútil,
Vejo-te terra prometida
Essa luz viciante,
Longe e distante,
Forte e vibrante.

Corro em teu encalço
Solto, livre de ilusões
Para realizar nosso sonho.

Não tenho lido muito ultimamente, mas resta-me o consolo de ter uma bela pilha de livros ao lado da cama, em lista de espera para serem devorados, todos recomendações femininas:

  1. Afirma Pereira“,de Antonio Tabucchi – estou a gostar ler aos poucos este livro sobre uma Lisboa salazarenta, mas vou lendo aos poucos.
  2. Parapsicologia – subversão infinita?” da C.L.A.P Portugal. Recomendado e emprestado pela S. e que estou a saborear deleitado.
  3. Guia de Meditação“, Paramanada. É um livro emprestado pela J., e é decididamente a minha próxima leitura, pois estou cada vez mais interessado na filosofia e maneira de estar oriental.
  4. O Amante de Lady Chatterley“, de D.H. Lawrence. Foi a proposta da I. Para as férias, só que ainda não lhe peguei…
  5. Escala Evolutiva – sistema de Avaliação e Hierarquia da Universidade de Yôga“, Mestre Sé;rgio Santos. O livro está impregnado num cheiro a incenso imaculado, também da J. , mas que temo que tenha mais uma função decorativa/purificante.
  6. Tudo o que você; nunca quis saber sobe Yôga (e jamais teve a intenção de perguntar)”, Mestre De Rose. Mais uma vez perfumado e emprestado pela J., mas que decididamente está na lista de leituras próximas.

A noite passada

A noite passada acordei com o teu beijo
descias o Douro e eu fui esperar-te ao Tejo
vinhas numa barca que não vi passar
corri pela margem até à beira do mar
até que te vi num castelo de areia
cantavas “sou gaivota e fui sereia”
ri-me de ti “então porque não voas?”
e então tu olhaste
depois sorriste
abriste a janela e voaste

A noite passada fui passear no mar
a viola irmã cuidou de me arrastar
chegado ao mar alto abriu-se em dois o mundo
olhei para baixo dormias lá no fundo
faltou-me o pé senti que me afundava
por entre as algas teu cabelo boiava
a lua cheia escureceu nas águas
e então falámos
e então dissemos
aqui vivemos muitos anos

A noite passada um paredão ruiu
pela fresta aberta o meu peito fugiu
estavas do outro lado a tricotar janelas
vias-me em segredo ao debruçar-te nelas
cheguei-me a ti disse baixinho “olá”,
toquei-te no ombro e a marca ficou lá
o sol inteiro caiu entre os montes
e então olhaste
depois sorriste
disseste “ainda bem que voltaste”

Sérgio Godinho : A noite passada

Parte II – Base logística

Naturalmente que eu não gosto de deixar muitos imbróglios pendentes ou assuntos suspensos antes de ir de férias ou viajar. Trata-se de uma questão de leveza de espirito, que nos permite usufruir da nobre sensação, de que se não regressarmos, por algum motivo funesto ou até por opção radical de vida, nada ficaria por dizer ou fazer.

É uma questão de não deixar pontos sem nós, pontas soltas ou pontos nos is. É gratificante poder sentir essa liberdade segura de que deixamos tudo tratado, e as coisas não vão parar na nossa ausência, ou pelo menos nenhuma catástrofe emocional ou pessoal vai estar à nossa espera se voltarmos.

Contudo desta vez a expedição será longa e temo que vou deixar para trás alguns assuntos num limbo nada aconselhável. Estou a tentar, mas não me vejo com muito discernimento ou forças para isso, e os dias que me faltam não seriam suficientes.
Desta vez a ausência será também uma fuga ao meu próprio encontro, num grito de cisne enlouquecido. Retemperando forças e alegrias, abstraindo dos problemas, pausando um pouco. Para depois voltar. Mesmo assim quero deixar uma base logística sólida, ou pelo menos que se aguente de pé…

Como se o forcado se levantasse do chão poeirento da arena, sacudisse o pó e limpasse o sangue da cara e do colete. Ainda atordoado, leva a mão à cabeça e ajeita mais uma vez o barrete verde. A faena segue dentro de momentos e há que tentar mais uma pega daquele touro negro de 550 kg. É essa a honra de pegar de caras o touro. A perseverança e coragem.

“ehhhhhhhhhhh toro! Eh, toro, toro!!!”

É difícil manter a serenidade ou o equilíbrio quando se está perante situações limites ou pelo menos não esperadas. Infelizmente é essa a minha história durante as últimas semanas, que já se acumulam em meses. Dir-se-ia que estava predestinado a ser um fim de Inverno e inicio de Primavera fulgurante e quase cruel para mim.

Tenho de facto perdido a calma e só às custas de algum auto-controle que me resta e de algumas horas de reflexão semanais é possível não ansiar por um Xanax ou um Prozac como forma de acalmar os ânimos. É difícil ser solicitado e solicitar alguém que se gosta, sem que as emoções sejam levadas ao extremo. Mas mais difícil é fazer isso em três frentes, sem saber para qual o nosso interesse vai com mais fulgor.

Mas mais difícil ainda é tentar não cair nas artimanhas do jogo, tentando ganhar tempo para ver para que lado pende o coração e as ideias. Fazer assim um malabarismo muito ao estilo de triplo-salto-mortal sem rede, nunca foi a minha maneira de ser.
Tento jogar limpo e fazer contorcionismos extremos para que nenhuma das três bolas caia ao chão, mas a tarefa é cada vez mais complicada, e sei no fundo que me arrisco a deixar cair as três bolas sem agarrar nenhuma.

Mas o mais difícil de tudo é não pensar nas três, é não tremer quando o telemóvel toca, é imaginar uma agenda algo pesada aos fins-de-semana, que acaba invariavelmente numa ou em duas noites de euforia, com uma pesada divida e cenas de ciúmes no dia seguinte.

Por isso abraço com grande satisfação a ideia que vou conseguir fugir por uns dias rumo à terra da Vera Cruz, só que infelizmente não me parece que consiga manter as bolas no ar até lá.

Estou baralhado e a minha mão está a ficar sem trunfos. Não me lembro se o Ás de copas já saiu e estou com o terno e a manilha de copas… e é a minha vez de jogar!

Questiono-me muitas vezes se serei muito excêntrico. A verdade é que nas duas ultimas semanas, tenho me comportado como tal, em especial, durante o fim-de-semana. N. tem dado o mote de um desenfreado gosto pelo descontrole e alienação noctívaga, que passam rapidamente da euforia para a culpabilização após os pecadilhos cometidos. E assim se eu ponderar bem, apesar de o acompanhar como amigo que o ampara, qual anjo da guarda, também sei que a minha vontade não é forte pois quero partilhar essa necessidade de alienação e busca pelo desenfreado e ilusório ao ritmo em que não existe um amanhã.

Não admira que me tenha colocado numa posição de xeque-mate, oferecendo a Dama e deixando o Rei sem fuga possível, ao tentar fazer de um misto advogado do Diabo, cruzado com Grilo falante, e simultaneamente gozando cada momento dessa vida desenfreada. Se a minha vida neste momento esteja tão repleta de paixões intensas é também verdade que tenho o coração tão partido, e tantas vezes colado com cimento-cola que o meu autocontrole está a dar de sí.

Creio que será essa a síndroma da falésia: sei que é perigoso caminhar pelos precipícios da falésia; aviso todos desse perigo, mas contudo o fascínio e a beleza dessas falésias e das ondas rebombando nas rochas escarpadas é tão imenso que somos atraídos por um magnetismo irresistível. A vertigem é um alento e também um suicídio. Dar valor à vida e agarra-la com todas as forças e pelas mesas razões saber que a posso perder devido aos riscos que saboreio.

O segundo síndroma é o do Guru. Não creio que quando a minha chama se apagar me vão oferecer um par de asas ou um halo. Apenas sei que me comporto com uma exasperante lucidez e iluminação. Não sei se é ilusória, mas as pessoas até me dão ouvidos, e dou por mim a ter rasgos de sabedoria, de imagens de equilíbrio e vomito palavras de conforto e esperança. Não é que não as sinta profunda e sinceramente. Mas o facto é que as tento transmitir, compelido e motivado por algo que me é mais forte. Não sei se será mais um belo sinal de maturidade, ou se é apenas um irritante tique da alma. O facto é que M., N., I., Ju, So., J., A. entre outras pessoas que me são queridas ouvem de mim palavras profundas e me sinto como aqueles seres de éter que sussurram ao ouvido dos seres humanos palavras de conforto e esperança e animo. Uma imagem como as Asas do Desejo de Wim Wenders, em que a realidade de vários planos de existência se confundem.

Estou sereno e contudo energético. Cansado e com endurance acrescida. Envelhecido e mais jovem que nunca. Desmoralizado e confiante.