Dias

Faz dois anos que iniciei este diário algo confuso. Muita água passou debaixo do moinho deste então, muitas linhas e pensamentos desconexos, memórias encapuçadas e atribulações em que este meliante se viu envolvido.

Nenhum destes retalhos parece fazer sentido, mas reunidos, seguindo a cronologia com que os depositei na Internet, algo interessante parece surgir da amalgama de textos e frases: forma-se um estranho retrato evolutivo, desconexo de lógica com pinceladas abstractas, mas que sempre me deu um estranho prazer e que agora forma um bolo de memórias fermentadas.

O Psicótico nunca pretendeu ser uma afirmação narcisista, nem um enigmático pedido de ajuda sobre uma vivência menos conseguida, consciente ou inconsciente. Não foi um repositório de conhecimentos triviais ou uma pseudo-obra literária. Tão pouco foi um show off da night life, ou roteiro de diversão. Provavelmente foi tudo isso e simultaneamente nada disso.
Trata-se somente da minha manta de retalhos, uma cápsula do tempo aberta em permanência no éter do ciberespaço, partilhada ao mundo sem intimidades em demasia, mas que apenas se destina ao próprio autor.

Parabéns Psicótico

Não devia duvidar tão frequentemente de que a minha capacidade de encaixe está cada vez maior. Não acredito que está maré de pequenos azares quotidianos possa continuar indefinidamente, como um enorme maremoto. Contudo essas pequenas ondas sucedem-se mais do que seria desejável ou provável, e causam em mim algum desespero, pelo menos de causa.

Estou com o que chamo ser uma “ressaca de Primavera“. Tenho insónias, dores de cabeça, estou cansado e sem paciência. Deambulo semi-inconsciente durante toda a manhã, e durante a noite nem um fio de sono de amostra. As minhas energias parecem ter sido drenadas por um demónio vampiresco ou então estou num grave deficit de seratonina.

O meu quotidiano parece também reflectir todo o panorama nefasto e desorganizado do meu intimo: vagas sucessivas de disparates e azares.
É certo de que o facto de o meu carro estar no mecânico mais de uma semana é perfeitamente natural. Percorrer pequenas distancias num bolinhas com menos 80 cavalos também não é assim tão mau como isso, muito embora estivesse mesmo apavorado quando entro numa auto-estrada montado naquela máquina de lavar a loiça (estou mal habituado!). Aborrecido é andar 30 km com a máquina recuperada e ouvir uns sons esquisitos e a direcção assistida ir para o maneta de forma fulminante. Já estou a ver o mecânico a esfregar de novo as mãos de contentamento: “mandar vir peças”; “mão-de-obra”; “afinação” – são palavras que não me apetece ouvir de novo, nem a mim nem à minha carteira.

Acumulada tenha uma interminável lista de afazeres urgentes, quer a nível profissional, quer pessoal. A minha correspondência acumula-se, a minha vontade de escrever é reduzida, todos os planos parecem adiados, mas pendente e numa ligeira reflexão posso listar mas de dez ordenações diferentes de to-do´s.

Mas disse chega. O cúmulo, que me fez despertar foi a situação patética de ter ficado fechado do lado errado da casa, montado numa bicicleta e em calções e sapatilhas enlameadas e t-shirt suada. Senti uma vontade indescritível de pegar na bicicleta e atira-la contra a primeira coisa que se movesse.

Respirei fundo e pensei com os meus pedais: afinal que estou para aqui a fazer?
“show must go on”.
Parece que me estava a esquecer de muito do que aprendi nestes últimos meses.

A médica estava exausta e eu ainda mais. A consulta era breve e apenas se destinava a uma breve análise de exames, que se apresentavam regulares sem motivos de preocupação. Eu estava aborrecido de estar já à espera de consulta há mais de hora e meia, e há tinha esgotado todos os métodos de auto-distracção para fazer passar as horas numa sala de espera.

Quando a televisão pública começou a transmissão d`«O menino Tonecas» a minha paciência bateu mesmo no fundo da cave e partiu-se em mil bocados. Nada me pode irritar mais que aqueles sketches sem graça, com gags previsíveis desde a primeira frase. Ao nível intelectual e cultural da maioria da população: um verdadeiro serviço público…

Dez minutos de consulta, 40 euros mais pobre (sem recibo porque com recibo são 50), mais uns quantos placebos aviados. É o país que vivemos…
Juro que este Verão as coisas terão de dar uma grande reviravolta. Nem tudo pode ser a descontracção da falta de iniciativa em que me deixei cair. E a minha caixa de correio dá-me algum alento, talvez mesmo o remédio mais eficaz.

Há dias em que a frase «Eu não me devia ter levantado hoje» tem um significado bem mais lógico do que seria de esperar. A vida é singularmente um conjunto de pequenas acções e reacções, que não conseguimos antecipar com todo o realismo.

Há quem lhe chame destino, ou antes calcule as probabilidades de um determinado evento, fazendo um matrimónio forçado entre a lógica matemática e a realidade caótica da previsibilidade do axioma causa/efeito.

Presumo que aqueles dois segundos que me deixei estar a dormir, ou os cinco segundos por ter deixado aquela senhora atravessar, poderiam por si só evitado o desastre: dois segundos antes e o cão sairia em corrida de entre os dois carros estacionados e eu travaria em segurança. Mas esses segundos extra não existiram, e só tomei consciência atónito que o bicho se tinha atirado para o meu pára-choques quando o baque surdo se deu.

Só dois segundos seriam tudo que eu desejava para evitar este singular e trágico incidente. Sinto-me culpado por ter ferido o bicho, que apesar dos meus esforços, se raspou, muito embora devesse estar bastante ferido. Nada de sangue mas o pára-choques partido exibia bastantes pelos e o inter-cooler arrebentado tornou impossível a combustão no motor. Brilhante. Além do sentimento de culpa, de não conseguir ajudar o bicho, vou também andar a penantes durante o fim-de-semana. Foram só dois segundos de azar

May Day! May Day!

Sinto-me como se a casa das máquinas já estivesse inundada e o navio já condenado emitisse um derradeiro pedido de ajuda. Ainda não ordenei o lançamento dos botes salva-vidas, mas a sua necessidade parece eminente. Tudo isto porque demorei demasiadas horas a sentir que o meu cérebro recuperava finalmente algum discernimento e capacidade de ordenar ideias e não alucinar com um imaginário apocalíptico.

Como comandante deste navio não me posso dar ao luxo de passar tão perto de tamanhos Icebergs a todo-vapor. Não havia necessidade de correr semelhantes riscos, nem de por em perigo toda a tripulação.

Tudo isto porque o Club Kitten @ Triplex chamava por mim, hipotequei todo o Domingo e ainda o inicio da semana, envolvendo-me num devasso mergulho de excessos quase suicidas, para o meu corpo já não tão jovem. Mas valeu a pena, foi bastante bom apesar de estar permanentemente a nadar na multidão, ao som do catolicismo musical. E não me recordo de quem me atirou uma bóia. Foi um naufrágio muito atribulado…

Estou cansado mas não aborrecido. Um vazio extremo na ordem dos pensamentos lógicos, uma alienação voluntariosa, uma ressaca intensa, como se o meu crânio estivesse repleto de areia fina.
São efeitos devastadores, uma contabilidade de danos e perdas que me habituo a fazer aos domingos à tarde e as segundas-feiras, mas que não me causam remorsos nem mágoas.

É apenas a minha dualidade Dr Jekyll e Mr Hyde que aproveita do fim-de-semana para se afirmar.
A carne é fraca e os espirito nem sempre tem a rectidão e a robustez para se por a salvo de pecadilhos exagerados. A noite é uma altura sugestiva, e prolonga-se sem regras até depois do dia raiar, com um apetite voraz de tudo quanto seja animação, fulgor e festa. Como que quisesse saborear toda a vida em escassas horas, dando azo a uma paixão que não termina. Estou cada vez mais sofrego, e o Sr Hyde está cada vez mais poderoso.

Não tenho tido muita paciência. Por vezes desejo tornar-me num simples caminhante cujas únicas preocupações seriam relativas ao destino a seguir para pernoitar e onde arranjar o pão de amanhã. É uma ideia idílica e utópica, mas não tão descabida como isso.
A vida é no fundo uma diáspora, uma cruzada, uma demanda pelo Santo Graal, e pelo Sentido da Vida. (Ei! Não estou a falar em filmes dos Monty Python)

Não que essas metas mitológicas existam realmente, mas sim são como que reveladas e encontradas durante jornada, numa aprendizagem só possível pelas experiências diferentes com que nos deparamos e a forma como o inédito e o distinto alargam o nosso horizonte de pensamentos.

Frequentemente quando viajo reencontro-me, como se andasse perdido de mim mesmo, esquecido que tenho uma vida e não uma rotina. Já consigo fazer ruir rotinas e hábitos, mas não os meus vícios. De tempos a tempos gosto de me fazer sozinho à estrada sem destino, preferencialmente com o auxilio de um volante, e percorrer largas distancias sem destino aparente – apenas pelo gosto do desconhecido com que me vou deparar amanhã. Provavelmente tenho instintos gitanos e quem sabe senão é a minha vocação inata de vadiagem que me faz pulsar.

– the redemption

Mea culpa! Faça aqui um humilde acto de contrição, de arrependimento e anseio o perdão pelas minhas palavras injustas de posts anteriores. O pecado de sair a uma quarta-feira à noite ninguém mo vai perdoar pois não tenho o menor remorço de ter apenas três horas de sono em cima das costas. Fui até à vila, apesar de não ir ao festival, acabei por dar de caras ao que já desconfiava: DJ Kitten também faz outras paragens menos importantes.

Qual o meu total espanto estava verdadeiramente aterrador e estonteante, ficando quase impossibilitado de me vir embora, pois o trabalho no dia seguinte não era uma opção. Vibrei imenso.

Volta Kitten tás perdoado
(mas só em sítios escondidos e não badalados!)

Sexta-feira DJ Kitten estará no fantástico e emblemático Club Vademecwm em Vigo, onde também actuarão os magníficos Jeans Team.
Ninguém me quer dar boleia? Era um acto misericordioso!

O paquiderme e a menina dos meus olhos

Após um dia de monitorização, com o insuflar regular a cada quinze minutos de uma manga azul no meu braço esquerdo, estou com a boa disposição e calma de um paquiderme ferido e com o discernimento e capacidade de raciocínio de uma lêndea.
Acredito que a privação do sono é uma das mais poderosas formas de pressão e tortura, capaz de eliminar qualquer vontade e auto-estima.

Felizmente nem tudo são más disposições ou carência de moral. Recebi a excelente notícia, que a menina dos meus olhos, a D. tem a possibilidade de ressurgir do limbo, sair do coma da inexistência a que tinha sido condenada. Como lhe dediquei tanto tempo, tanto empenho com algum desinteresse, espero que ela ressurja, plena dos princípios que teve antes de ser corrompida por um cancro nefasto. A sua libertação só pode ser possível às custas do muito desejado enterro final do Passado já há muito agonizante.

O Rei está morto! Viva o Rei!

A medicina tem assistido a enormes avanços na detecção e análise precoce de maleitas modernas. Os médicos quantificam e recolhem todos os dados que podem e por isso vejo-me com um apêndice mecânico denominado Model 90297, que de quarto em quarto de hora vibra e insufla uma manga. Sou um ciborgue a pilhas Duracel condenado a ter uma noite agitada e ficar com os nervos em franja. Promete uma tortura regular numa noite branca.

Bip-bip- … vruuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuum… -tesck-tesck-tesck-tesck… Biiip
Bip-bip- … vruuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuum… -tesck-tesck-tesck-tesck… Biiip
Bip-bip- … vruuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuum… -tesck-tesck-tesck-tesck… Biiip

Foi um fim de semana algo diferente em que eu alternei entre a introspecção e a total futilidade superficial. Por vezes temos que nos dar esse direito de nos alienarmos como muito bem entendamos.

O clima prega-nos muitas vezes partidas e faz-nos sentir demasiadamente miudinhos, face às forças naturais. Tinha planeado um fim-de-semana para voar, mas as “condições climatéricas” não eram as ideais para façanhas que envolvem alguns riscos ligados com a geografia e clima. Por isso não fui um anjo sem asas, apesar de necessitar urgentemente de me escapar para as altitudes.

Exactamente pela minha necessidade de um grande fuga, de uma cândida alienação, acabei por fazer uma caminhada menos benéfica para a minha saúde, assim como para a minha carteira. Mergulhei num cenário de total degradação noctívaga, com direito a fazer duas das noites mais extravagantes desde que me conheço, e estamos a falar de quem já cometeu uma considerável série de atentados à moral e pudor, sendo procurado, vivo ou morto pela Brigada dos Bons Costumes. Isto de percorrer as três capelinhas é criminoso!

Mas nesta descompressão emocional, tão necessária, também interiorizei que os contra-sensos da minha vida terão aumentado nos últimos anos. Não é um facto novo que o desprendimento afectivo e emocional aumentam, a medida que vamos conhecendo mais pessoas.
Fazendo às contas, a quantidade de seres humanos que se cruzaram na minha intimidade, cresceu exponencialmente, fruto de algum apetência de sedução, alguma necessidade inata de convívio ou afins. Mas isso não me ofereceu o seu propósito, mas sim tem cavado algumas fronteiras de solidão a que ciclicamente não consigo fugir. É como se a quantidade reduzisse drasticamente a qualidade, e pior me fizesse criar alguma sofreguidão a lidar com as mais variadas situações.
Espero que esta sensação seja meramente passageira, pois é desconfortável estar a sentir-me só, quando estou rodeado e acompanhado por uma multidão. Esta falta de lógica e luz, têm que ser passageiras.

Resta-me fazer um bocado das tripas, coração, e rezar que esta postura Titanic não meta nenhum Iceberg.

Sem me aperceber, há pequenas coisas que se modificam na nossa maneira de ser, após um pouco de consciencialização. Não se trata de algo que lemos e nos altera a filosofia de vida, nem uma experiência mística que nos renova de fé. É antes uma caminhada lenta, uma absorção continuada de uma aprendizagem crescente.

Creio que sou um autodidacta cauteloso, pronto a refutar certezas e a ter um espirito aberto a novos conceitos, buscando uma iluminação não dogmática. Não que caia nas escusadas asneiras da espiritualidade feita à medida, a gosto do freguês, nem partindo do nada existencialista até chegar ao crente fanático.

A vida é talvez demasiado efémera, como um par de minutos para que nos possamos dar conta da sua razão, desaproveitando muitas vezes o seu desfrutar por razões de temores ou ilusões. Por isso à medida que cresço vou-me desabituando sem menor esforço de pequenas facetas menores da existência. Creio que dou de facto menos valor aos bens matérias, do que dava há uns anos atrás. Assim como as crianças vibram de ansiedade por um novo brinquedo, tal gosto diminui à medida que crescem, e torna-se algo menos interessante ou crucial para a sua felicidade. Se pensarmos bem, nestes dois minutos que nos são atribuídos, deve dar alguns gosto desfrutar de uns brinquedos bonitos, como casa, carro e todas essas coisinhas, mas nada disso nos acompanha para lá da vida, nem é interiorizado por nós. Apenas nós podem dar algum conforto aparente, mas não nos pode realizar interiormente apesar da nossa sociedade estar construída ao redor deste conceito de propriedade e posse.

Fugindo ao calor escapei-me para a praia, tentando uma noite sossegada de sono na passada sexta-feira. Orfeu foi bastante antipático e presenteou-me com uma praga de mosquitos que me deixaram acordado uma boa parte da noite e madrugada. Desesperante sentir que naquele momento, eu de bom grado, prepararia uma solução final para todo o género de mosquitos sem o menor remorso.
Exausto adormeci apenas de manhã e acabei por perder umas horas de praia retemperadoras. Era dia de ir até Miguel Bombarda, encontrar-me com Ma., que já não via há muito e comprar uns CDs no sitio do costume.

Aproveitei e finalmente fui conhecer a Casa da Música. Fiquei quase que orgulhoso, com o edifício que de facto é inspirador e motivante no sentido de trazer à minha cidade alguns artistas musicais atraídos pela arquitectura. Espero que sirva de um polo cultural agregador, que tanto faz falta à cidade.

Por vezes é necessário parar para meditar sobre a nossa vida. Desde que me conheço fui capaz de analisar, mais tarde ou mais cedo, os passos que tenho dado e que necessito de dar na jornada da existência.

Durante estes últimos dias estou repleto de uma complexidade de emoções, confusões, dúvidas e receios. Sinto que os meus neurónios tropeçam e cambaleiam, a passo com um cérebro extenuado de perseguir uma solução inexistente.
A Vida não obedece a equações matemáticas nem pode ser objecto de causalidade. Um acto não implica necessariamente um acontecimento, uma causa nem sempre dá origem a um efeito. As experiências laboratoriais não serão reproduzidas fora de ambientes controlados, nem a distribuição da probabilidade de um acontecimento é consistente.
Por isso medimos a olho, seguimos instintos, e apoiamo-nos nas nossas experiências passadas para chegar decisões que necessitamos tomar. Não podemos seguir regras, formular hipóteses, extrapolar resultados.

Fermentado e fervendo, o meu cérebro está cansado de revolver toda uma série de encruzilhadas e questões com que me deperarei nas últimas semanas. Como já tem vindo a ser hábito ao longo dos últimos meses, a minha telenovela pessoal está num ponto de viragem do enredo com mais uma cambalhota alucinante. Mais uma vez sou o trapezista que se prepara para um triplo salto mortal invertido sem rede.

Por isso penso, intensamente peso os prós e contras, antecipo se a raínha vai tomar o bispo, ou se o cavalo vai atacar a torre. E se o meu peão defender antes o bispo? E se eu contra-atacar com o cavalo, ameaçando um xeque? Nunca existe a jogada perfeita, apenas a melhor jogada… ou a menos má.

Este calor abrasador é uma benção, mas repercute-se nas oscilações dos meus humores. Lembra-me a América do Sol, dos timmings mais relaxados, de noites aprazíveis e longas. De conversas languidas e olhares indiscretos.

Fez-me bem massacrar M. por uns dias de férias e descanso, abstraído de pequenas coisas que me roem o juízo. Soube bem estar longe, voar na A8 e A1, ter topado a tempo o carro descaracterizado da Brigada de Trânsito (ainda bem que aquelas camisas azuis não enganam ninguém), ouvido as experiências de duas simpáticas estagiárias de Jornalismo, partilhado umas horas pacatas com amigos.

Mas um Verão quente é sempre um Verão quente, e a minha costela Beirã chama-me à natureza e a um ritmo de vida lento no estio. Como tenho um ganha-pão pouco compatível com este tipo de vivência, fico algo taciturno. De certo uns ares de festa Joanina resolverão esta questão.

Ontem acordei algo ressacado, após uma noite algo movimentada no talho da cidade. Verificar uma despedida de solteiro feminina, acabando por ser um encontro bem aprazível, pode ter os seus encantos, mas se se torna um hábito não tem piada nenhuma. Nunca percebi bem esta tradição das despedidas de solteiro: alguém (em geral os amigos ou amigas conforme o sexo de quem se vai enforcar) quer apenas um pretexto para deambolar por casas de má fama, um cometer alguns pecadilhos visuais ou tácteis com stripers ou afins. Felizmente as meninas não estavam assim tão entusiasmadas, e acabou por ser bastante revelador.

Felizmente ontem estive a dormir na minha casinha, enquanto aquele sol da beira-mar me queimava através de um protector solar de factor 30.

Parte II – A fasquia

Para ser franco, a principal razão que me levou a saltar não se tratou de uma sede radical de adrenalina, mas sim o facto de me impor uma barreira importante que conseguisse superar.

Muita gente encara a maioria dos desportos ditos radicais com um cariz negativo em que um conjunto de lunáticos arrisca a vida para dar nas vistas e sentir a emoção do risco e da aceleração das batidas cardíacas. No meu caso não se tratou de ter o gostinho por um “rush“, mas de algo mais importante. Tratou-se um desafio pessoal ao estilo do que em bom português se poderia descrever pela seguinte questão “Tens ou não tens tomates?” Foi há cerca de dois anos, em conversa corriqueira com M. no Aniki Bóbó que a ideia de saltar se introduziu na minha mente, e foi ganhando alguma forma, como se fosse aquela realização interessante.

Julgo que quando um atleta de salto em altura se propõe a evoluir tem que pensar em subir a fasquia. De nada lhe servirá saltar com à vontade um mísero metro e cinquenta durante toda a carreira como desportista. O que faz dele um atleta é subir aquela fasquia sempre que lhe seja humanamente possível. A Vida é como uma prova em que a fasquia vai subindo, e só aqueles que treinam para se superarem, e estão dispostos a novos desafios podem saborear a realização de subir a um pódio.

Depois do treino e de demasiadas horas de conselhos teóricos e de histórias de pára-quedistas sobre as suas experiências pessoais, nada poderia ser mais importante como o acto de ter a coragem no momento da verdade. Esse momento foi passado com determinação e capacidade, em que eu dominei o pavor de me projectar das alturas esperando que nada acontecesse de muito errado.

Sentir a satisfação de ter atingido uma meta, transpor uma adversidade é algo que nos faz sentir vivos e capazes de encarar com mais facilidade outra barreiras presentes e futuras que se nos deparam. O vigor do auto-domínio e vontade de chegar aos nossos objectivos dão-nos um incentivo e auto-confiança essenciais para vingar a vida.

Parte I – O dopado

Quando o meu voo terminou e senti aos meus pés a agora diferente sensação de pisar terra firme, algo estava em êxtase na minha mente. Todo aquele cansaço e prostrações do quotidiano tinham-se eclipsado.

Por estranho que pareça não seria a adrenalina pulsante nas veias que me estaria a roubar o periclitante juízo que me resta. Era uma enorme alegria, um fulgor de concretização que nos enche o coração em ocasiões raras. Como se tivesse quase tocado o Divino, elevando o meu estado de consciência, que transbordava.
Ainda perfeitamente nas alturas, a torrente de pensamentos gerados por esta experiência não parava, e sei hoje que a vertigem de repetir na hora a façanha era tão grande que não teria qualquer tipo de auto-controle.

Foi neste estado de graça que desci a colina sinuosa a mais de 100 km/h, fazendo gritar os pneus e disparando continuamente o sistema anti-derrapagem. Estava embrutecido nos movimentos, e felizmente apercebi-me a tempo que já não era um ser alado. Queria partilhar tudo aquilo, mas ausência de palavras e a comoção, e muito provavelmente aquele brilho nos olhos algo alienado, não me tornaram num bom narrador. Já me queimava o telemóvel na orelha, e fui até a casa de C. que oferecia mais um excelente jantar, com N., S., e mais gente do Sá Carneiro . Não consegui comer, nem era capaz de deixar de sorrir. Eléctrico tinha mais visitas por fazer, minhas pernas eram molas, minhas asas ausentes ainda não apresentavam sinais de dormência.

Fui ter com os amigos do Passado, ainda high. Foi um bom resto de serão. Contudo quando chegou a hora de dormir, dei-me conta que ainda estava dopado pela mais poderosa de todas as drogas: a alegria de desfrutar a Vida.

Finalmente concretizei um sonho que alimentava há muito. Subi aos céus e desci suspenso por um pedaço de nylon, conseguindo não só desfrutar de uma sensação única, como também provar a mim próprio que não existem barreiras, e que a vontade supera o instinto e lógicas condicionadas.

Dizem que o homem não foi feito para voar e que se Deus quisesse que voássemos, ter-nos-ia dado asas. Discordo! Somos apenas anjos sem asas, lutando pelo direito de voltar a ser essa essência etérea e alada.

Não é possível colocar em palavras aqueles três minutos, que simultaneamente tiveram um gosto a eternidade e a fugacidade de um pestanejar.

Durante todo o fim-de-semana respirei toda a ansiedade do baptismo do paraquedismo. O treino repetido, a teórica, as manobras ensaiadas até ao exaustão, a cassete remoída no vídeo e na minha memória, o arnês suspenso a torturar as minhas virilhas. O ambiente de camaradagem semi-militar, numa irmandade de quem já tem centenas de saltos e tem no olhar um brilho de satisfação que eu não entedia antes de saltar.

Finalmente o Cessna 182 decolou, já no entardecer de Domingo, quando toda a ansiedade me tinha roído até ao âmago. Lá em cima a minha mente lutava entre o pavor e a calma enquanto todos aqueles ponto se distanciavam, ficando cada vez mais pequenos. Chegou a minha vez. Agi maquinalmente, pois era absolutamente contra natura, agarrar-me ao montante da asa, a 140 km/h e a 4500 pés. “Pronto!!” gritei e à voz de “OK” lancei-me no vazio.

Talvez o meu cérebro nunca estivesse preparado para sentir pela primeira vez o terror misturado com a ansiedade e prazer. Ao ver o avião subir vertiginosamente e o corpo catapultado à medida que a tira extractora do automático ejecta o pára-quedas, todas as ideias que nos possamos lembrar passam a cavalgar em simultaneo como numa parada de militar do exército da CCCP de 6 horas no Kremlin perante o politburo, comprimida num único segundo, levando dos 10 km/h a Mach 271,7 a nossa capacidade cerebral.

Tudo porque em teoria, quando se salta de um avião estamos do ponto de vista da Física mortos numa queda fatal. Não sei se gritei, de fiz a contagem, se balbuciei uma série de palavrões. Acho sim que o meu consciente e inconsciente cruzaram-se, chocaram e fundiram-se, e que levitava em êxtase.
Estava a minha existência sujeita a algo de verde alface no meio do imenso azul que se começa a abrir, numa lufada de salvação.
Algo estava errado: os cordões enrolados. Simples de resolver e sem pânico rodei. E depois voava e finalmente atingi um estágio de libertação e liberdade do espirito.
O tempo parou, e a suavidade do ar e a imensidão do espaço rolavam como uma injecção de 50 ml seratonina directamente no córtex. Não seria o Nirvana mas era contudo um estádio intermédio de iluminação e expansão da mente. Sem adjectivação possível.

M. chama-lhe sexo com anjos. Eu prefiro dizer que está a uns escassos níveis do Nirvana.
De volta ao chão, uma aterragem minimamente calma, e um sorriso de orelha a orelha. E um brilho no olhar. Senti a electricidade da satisfação e realização em cada célula, de cada tecido do meu corpo.

I made it! I was there in the skys! I can fly!