Não gosto de me torturar. Não tenho vocação de masoquista, nem de vítima. Mas para superar algumas vicissitudes e entraves é necessário reportar as nossas carências e pecadilhos, e exorcizar os nossos demónios da dependência de tóxicos. A humilhação e a partilha das nossa fraquezas e a melhor forma das enfrentar, como nos AA, construindo uma base sólida, um estofo de humildade reconhecendo os erros e a nossa fragilidade.
Eu sou tabagista. Fumo há 15 anos. Comecei a fumar embebido nas atitudes rebeldes de adolescência, mesmo consciente dos riscos do cigarro. Era um hábito social e melhorava a aceitação num grupo, numa perfeita idiotice de conceitos dos late 80s. Viciei-me. Tornei-me dependente de nicotina muito rapidamente, nessa necessidade de sorver ar queimado, repleto de um cheiro nauseabundo que rasga a garganta e brônquios. Sem esse tossir o corpo revolta-se, chamando por mais veneno, e a cabeça com o tique do hábito de mão faz soar todas as campainhas na ausência daquele tirano, envolvido em papel branco e castanho. Cheguei a levantar-me da cama para fumar, e fumar antes do pequeno almoço.
Já tentei várias vezes parar com este vício, sem muita convicção, apenas por umas frustrantes semanas de profundo nervosismo, catatónico, dopado, ansioso. Ressacado. Humilhado. Frágil.
Hoje torturo-me numa última vez. Só quero chegar ao fim do dia sem ter levado um cigarro à boca. Um dos 20 que levava diariamente à boca e acendia maquinalmente como se fosse um acto tão normal como respirar. Estou já a sentir os primeiros ecoares fisiológicos da abstinência, da privação de um toxico há muito embebido no meu organismo que está por isso debilitado. Durante semanas a coisa vai piorar. Tenho que me afastar de sítios poluídos e locais cheios de suicidas com cigarros à arder. Tenho que deixar também o café, para reduzir a necessidade desses hábitos de simbiose.
Não foram esses anúncios parvos nos maços que me decidiram a tentar a luta diária para deixar de fumar. Todos os fumadores estão cientes dos riscos, mas não têm uma sapatada nas costas com força, um empurrão, um apoio que os acelere para essa libertação da dependência física e psicológica da droga vendida pelo estado. Eu hoje tenho esse empurrão esse apoio, e acima de tudo essa vontade de me libertar antes que o meu sangue deixe de receber oxigénio.
Já chega de alcatrão e monóxido de carbono nos meus pulmões. Já estou farto de ter um ticket para a lista de espera para um cancro do pulmão, de um AVC, de uma angina de peito ou de uma bronquite crónica, numa morte mais próxima e sofredora. Já estou farto de gastar dinheiro num produto que de facto não necessito e apenas piora a minha vida. Já estou farto do odor nauseabundo na minha casa, no meu carro, na minha roupa. Já estou farto de ter o meu olfacto e paladar obstruídos e dormentes. Já estou farto de não ter fôlego. Já estou farto de ser um jogador da roleta-russa!