Dias

Eu sei que ondas revivalistas não surtem grande efeito. Nem efeito, nem boas experiências. Nem em termos musicais nem festivos é aconselhavel reviver o passado, por muito bom que esse fosse.

Tal não foi o caso de rever um muito velho e querido guru de noites musicadas e dançadas. Rei e senhor absoluto do electroclash, pioneiríssimo em Portugal desse estilo musical que tanto amei, (e julgo ainda amar), voltar a assistir a uma actuação do DJ Kitten era ao mesmo tempo uma obsessão e também um enorme receio. Temia não gostar, achar os ritmos e discos demasiado riscados, a peça demasiado previsivel.

Mais uma vez o club Gourmet salvou-me, num acto de total abnegação, o meu mano mais novo insistiu para uma noite de aposta em grande. Sempre como dois mosqueteiros, N. e eu seriamos um veteranos num Kitten na terra medieval. S. essa incrível amiga e cozinheira talentosa, deliciou-nos com um bacalhau irrepreensível acompanhado por várias botelhas de um surpreendente Quinta do Javali que fiquei extremamente fã. A companhia e camaradagem que valem 6 estrelas.

Chegados ao local de actuação na hora H, fomos presenteados como os únicos veteranos indefectíveis com uma sessão que merecia um selo de aprovação a ouro, mesmo passados todos estes anos. Um repertório totalmente novo, mas na mira do que sempre foi, um som brilhante de descontracção misturado com um delirio que faz dançar até os paralíticos. Valeu a pena ser um revivalista, pois fui agraciado com uma noite muito bem passada.

Pena ter sido curto e com a dosagem de Gin Tónico a carburar lá fomos dar os parabéns ao amigo João pela sua carreira. Em breve há mais. E o resto do noite foi muito zumbi

Estar frenético e simultaneamente introspectivo é um dos estados de espírito que me ocorrem de tempos a tempos. A corrida de mata cavalos surge singularmente quando eu a menos espero, com fortes tendências para gravíssimas lesões.

Não esperava um fim-de-semana alucinante, mas a busca por um aconchego levou-me a iniciar uma ruta del bacalau nada própria para a minha sobejamente idade anciã. Durante a semana estive como um saltimbanco enlouquecido a tentar malabarismos complicados. Ter as três bolas no ar é já um karma que me persegue desde há anos e que tem resultado invariavelmente num fim de espectáculo lamentável com três bolas rolando no chão. Pior ainda, sentia um forte e inexplicável sentimento de que o céu me iria cair na cabeça – de algo realmente errado me escapava de controlo.

Nesta perspectiva desorientada nada melhor que mergulhar de cabeça e lançar-me as feras. Foi o que fiz, e pelo menos tive a fortuna do meu lado, acompanhado por companheiros de combate veteranos nas andanças boémias.

O núcleo duro club gourmet não me deixou saltar para o frenesim, e deu-me rapidamente um remédio pantagruélico eficaz. Quem diria que o Chease Cake de tangerina fosse semelhante ambrosia. A anestesia local foi administrada na perfeição com uma grande abundância de louras e ainda estávamos no Sábado de madrugada.

O dia seguinte não foi excepção, com requisições proibitivas, onde tive que optar por convites menos exigentes do ponto de vista emocional. Mas as surpresas ocorrem e vi-me levado para uma cave de boa memória, agora transformada em reduto gótico pós moderno, saído directamente do imaginário da raínha dos malditos. Não admira que o Imperador se oponha ao Louco, e o Diabo ande sempre perto da Roda da Fortuna.

A passagem de ano acarreta a esperança frenética das resoluções para o novo ano. Planos e mais planos, expectativas e até por vezes alguns desajeitados desejos de mudanças radicais.

Enquanto se engolem as passas despejam-se atabalhoadamente votos de um futuro melhor, para os outros e para nos sem aprofundar muito o seu significado, e quando na pressa se engolem as últimas passas para acompanhar as doze badaladas damos conta que ruminar as uvas secas ao Sol não é assim tão agradável.

O que é agradável, isso sim é a predisposição de efectuar mudanças ao nosso life style a acalentar que é exequível, como camaleões, mudar os nossos traços e destinos. Talvez as resoluções de ano novo sejam apenas e só isso: acreditar que há algo melhor o nosso alcance.

Por bem ou por mal alguns volte-de-face já me caíram do céu este ano. A continuar assim este circulo ao redor do Sol promete ser agitado. Não será propriamente como na música pouco conhecida Death or Glory, em que se ainda temos um crash and burn, mas há muito em jogo. Felizmente há esperança de ouvir uma vez ou outra um Hallelujah como epílogo.

Dou-me conta que as intempéries emocionais na minha vida são tão pouco tempestades passageiras. Muito vulgar-me formam-se furacões de intensidade 5, mas que mais tarde ou mais cedo, vão perder a força e tornarem-se tempestades tropicais.

As chuvadas e vendavais não perduram. E tal como existe um clima dinâmico também no meu intimo sucedem-se as chuvadas e o sol resplandecente. De nada serve contrariar os elementos. Quando cai granizo, resta-me abrigar-me e esperar pacientemente que o Sol volte a brilhar. De nada adianta ameaçar as nuvens negras, dar murros ao vento, ou praguejar com os trovões. Basta esperar. Não tarda a bonança chega. Como num equilibro majestoso, por cada gota de chuva que cai, por cada baixa de temperatura, haverá sempre um raio de sol, um calor aconchegante.

Tudo está baseado num ponto de equilibro, tarde ou cedo o êmbolo tornará ao ponto de partida. Resta saber o Boletim Meteorológico com as previsões para os próximos dias.

Habitualmente termino do Verão coloca-me num espaço de ansiedade e melancolia. Setembro some-se rapidamente e os dias encolhem passo-a-passo anunciando o fim do estio e o inicio da reentre do frio.

Este ano contudo o Verão foi atípico, aguentando-se de unhas e dentes por Setembro fora. Isso evitou-me aquele sentimento ríspido do início do Outono e de me sentir cilindrado pelas primeiras ausência de Sol.

Fazendo o balanço contabilístico dos últimos meses não posso deixar de considerar que provavelmente todas as erupções e descargas emotivas que me assombram constantemente, tornaram-se menos intempestivas. Como que se a alma estivesse já calejada de um fluxo de atribulações tão permanente que agora qualquer tsunami não passasse de um ligeiro ondular.

Qual homem-bala, presencio a minha personagem, como alguém que se habituou a ser cuspido de um canhão a 160 kilómetros/hora para gáudio da multidão num circo com uma assistência cada vez exigente. O perigo e as lesões tornaram-se um local comum tão habitual que cada disparo e mais um ribombar rotineiro do maior espectáculo do mundo.

As fronteiras que delimitam os nossos movimentos podem ser prisões. Durante muito tempo deixei que a minha liberdade individual fosse reprimida, ou por assim dizer, que me colocassem grilhões contra a minha vontade.

Hoje sei que não permito que existam barreiras que me comprimam e me roubem o espaço vital que necessito para Viver. Acredito piamente que o destino somos nós que o fazemos, e que se baixarmos os braços os nossos horizontes rapidamente ficarão encurtados, ou pior, ficaremos reféns de estabelecimentos prisionais que nem sequer tentamos fugir. Não quero mais ser escravo das ideias preconcebidas nem da inércia rotineira.

É pena que demorasse tanto tempo a aperceber-me disso.

Já não é recente a minha aventura marítima. Contudo não posso esquecer a manhã em que me iniciei no que eu supunha ser um entedioso processo de dar banho à minhoca.
Com um pequeno grupo, urbano e relativamente bem armado, fui ao encontro de uma nova experiência. Fazer algo de novo ou relativamente pouco seguro, faz-me sentir vivo e pulsante, por isso quando surgiu a hipótese de ir a uma pescaria em mar-alto num barco de pesca artesanal não podia sequer pensar recusar. O convite caiu-me no colo durante um fim-de-semana bastante animado, através do inspector P. E da sua trupe.

A medo lá acordei cedo e na companhia do Inspector D. lá me fiz a estrada meio a contra-gosto. A ideia de navegar numa casca-de-noz motorizada não me parecia muito convincente. Pior ainda, as minhas ideias pré-concebidas acerca da arte pescatória, ou dos pescadores de taínhas, não auguravam nada de compensador.

Perante a luz de um Sol a despontar, chegamos ao local indicado, onde conheci duas pessoas exemplares, dois pescadores minhotos de enesima geração, dois sujeitos com a honestidade e simplicidade acolhedora. Logo fomos embarcados ainda na praia e rebocados por um tractor para o mar.

Mar límpido e calmo, envolto em bruma matinal, logo fomos surpreendidos pelo aroma do mar salgado, onde um motor mais próprio para lanchas rápidas cortou num branco de espuma e fervilhar ondulante um rasto que se perdia numa nevoa distante. Era uma sensação única, sentir o leve pinchar do barco à medida que as milhas se sucediam, e nos afastávamos para um outro universo, só conhecido dos lobos do mar e dos mestres da faina marítima.

Sem receios de enjoos, pois o mar pareceria um imenso lago senti a brisa marítima, num momentos emocionantes em que bandos de gaivotas e umas aves marinhas negras, ao estilo de fragatas levantavam voo assustadas pela nossa passagem. Senti a liberdade de uma aventura no mar, como que uma chamada ancestral (quem sabe familiar), de um retorno à imensidão do oceano. Quando paramos senti a quietude desértica do mar, num silêncio que nos permite ouvir as ondas e o saltitar frenético dos cardumes de sardinhas. Senti um aperto e uma exaltação que se sente quando nos parecemos vivos, apreciando algo que é único.

Pesquei pela primeira vez na minha vida. Retirei do mar uma cavala, com alguma angustia por matar o bicho, mas foi tão fácil puchar pela linha que não queria acreditar. De facto eles picavam tudo, até os anzóis. O inspector D. fartou-se de dar à cana e acabou por ser um recordista.

Para finalizar a manhã, um surpresa. Um bater na água ao longe repetia-se. Passou ao largo um grupo de golfinhos fazendo os seus saltos majestosos fora de água, numa frenética caça a um cardume. Foi entusiasmante de observar mesmo ao longe um grupo de golfinhos predando organizados em grupo, como fazem quando não estão enclausurados em tanques pelo homem.

Quando de regresso a terra firme, felizes pela faina fomos ainda agraciados por um jantar pago pelo nosso mestre-guia que não quiz nada em compensação por um dia de trabalho perdido. Assim é o acolhimentos das gentes generosas da Apúlia. Dá que pensar.

E depois seguiu-se a bela patuscada com o pescaria, mas isso foi outra história.

Quando o pico do calor chegou, assim como a época de incêndios, decidi tirar uns dias de férias para descanso dos meus ossos. Pretendia resolver uma data de assuntos burocráticos pendentes, mas a minha capacidade de organização e uma manifesta preguiça há muito adiada, apenas me permitiu realizar um punhado de tarefas agendadas há muito.

Uma das que me deu particular prazer, foi visitar a maninha e cunhado, conhecendo o seu rebento. Fiquei babado diga-se de passagem, mas quem não ficaria? Um sorriso lindo, pacifica de natureza, L., é a menina dos papas babados. Além da petiza, outra novidade era a nova casa, bem na baixa da minha cidade. Vista para os paços do concelho, em plena rua feliz. A baixa que está deserta durante a noite, acaba por ser um local aprazível. E se não fossem os ratos alados que invadem tudo e os gatos atrevidos, tudo pareceria como que se estivéssemos algures numa cidade verdadeiramente cosmopolita. Ao contrario das grandes cidades lusitanas, as pessoas de países bem organizados vivem nas próprias grandes cidades e não apenas na sua periferia.

Fiquei abismado com o trabalho de arquitectura e bom gosto, que a casa contém, assim como a inquilina do rés-do-chão, talvez a última pessoa que imaginaria encontrar nessa noite. Havia ali um je ne sais pas de Artes em Partes, e Maus Hábitos que me agradaram , pelo conforto e open air.

Os assuntos do Passado vieram em conversa corriqueira, mas agora mais nos aspecto saudosistas. O tempo acaba por acabar a frustração e revolta, para dar espaço apenas às boas memórias que valem a pena recordar. É bom reatar laços de amizade.

Rezam as lendas, que numa longínqua semana, vários cavaleiros da ordem do garfo e faca se sentaram á mesa, para um frugal repasto de fim de Julho.
Gratos pelo cair da noite na feira, o ar quente tornou-se suportável. Longas foram as conversas da nobre cortes, onde um porco bravo com castanhas deliciou os convivas.

Correu célere o delicioso vinho tinto, servido em canecas de barro, escorrendo pelas gargantas sempre secas dos convivas. Serenos e alegres deliciaram-se e alegraram-se na noite. Terminada a farta refeição, logo os cavaleiro partiram em demanda. Buscavam no meio da multidão, algum artigo por entre as tendas dos artificies que pudessem levar para os seus solares.

Mas eis que esta pequena aventura, rapidamente se tornou numa epopeia digna de ser cantada por todas os seríes de jograis por este reino fora. Os quatro cavaleiros mais bravos deparam-se inesperadamente com uma tenda com um precioso tesouro escondido iria maravilhar os seus olhos e gargantas. Tratava-se de um nêctar, uma ambrósia divina servida em pequenos copos esculpidos em madeira chamada Ginjinha.

Tratava-se de Ginjinha de óbidos, com um maravilhoso paladar a canela, como que irresistível ao palato mais exigente. Depois as lendas começam a divergir. Conta-se que dois cavaleiro se entusiasmaram tanto que tiveram como montada, uma linda burra chamada Luana. Conta-se também que os escudeiros que traziam a Luana graciosamente ajudaram a que a deliciosa ginjinha começasse lentamente a desaparecer das pipas. Conta-se também que os cavaleiros ao se verem confrontados por uma câmara de reportagem e ao saberem que se tratava da TVI se recusaram determinantemente a serem entrevistados por tão medíocre meio de informação.

Longa foi a noite e ainda amanhecia, quando exaustos, os cavaleiros prometeram não esquecer aqueles momentos medievais.

A Oeste repousa o mar, ciclicamente seguindo o passar das marés, ora calmo, ora bravo. Como num dos meus preferidos livros, éA Oeste nada de Novo , assim também retrato estes dias. Apesar de não haver notícias da frente Oeste, muito se passa nesta guerra esquecida e distante, tão próxima e tão pessoal. Dramas e vitórias intimistas se sucedem, sem alarido.

Gozo com satisfação o ambiente quente e momentos únicos em que a luminosidade, do amanhecer ou do fim de tarde, provoca cores únicas no cêu e no mar. Consegui aproveitar uma boa meia dúzia de vezes esses momentos excepcionais, onde talvez possa quase existir uma paz absoluta, numa praia deserta do entardecer.
A sós com as gaivotas, com a melodia infinita das ondas padecendo na areia, com um Sol já menos radioso, vou transportando-me para uma harmonia de calma interior que se me escapa durante o dia de labuta. São esses momentos que desvendam o véu que encobre o todo prazer de viver. Não trocaria isso por nenhum outro cenário, por nenhuma outra expectativa de existência.

Pergunto-me se não estou a descobrir uma espécie de verdade Zen, de reflectir na ausência de pensamentos, apenas levando a mente a apropriar-se e descobrir a realidade pura e simples que não vemos.

O vento tem imperado toda a semana, fustigando com fortes rajadas frias, os meus fins de tarde. Desta forma refugio-me um pouco no lar e não tenho aproveitado para dar asas à minha paixão pelo mar salgado, ou pela poeira que levanto em duas rodas. Além disso o último tombo em duas rodas tem ainda as suas repercussões, fazendo o meu tornozelo, algo semelhante a um balão que incha e desincha à mercê do calor.

Apesar da temperatura subir à noite, o meu ar condicionado natural obriga-me a agasalhos desmotivantes num Verão tão estranho. Agora tudo parece arder em volta da minha cidade, tornando o céu num azul baço e triste. O cheiro execrável do fumo aparece a cada esquina, fazendo um desconforto incomum das minhas fracas narinas.

A festa do santo padroeiro da minha cidade é sempre um evento que me alegra. Apesar das circunstancias e de não ser propriamente a euforia do passado, pois já não tenho pernas nem disposição mental para isso e portanto acedi com satisfação aos apelos de um um arraial de S.João mais ao género de private party.

Por entre a comezaina, que incluóa as obrigatórias e dispendiosas sardinhas frescas assadas na brasa, vi-me numa sessão new age de adereços, que muito embora dispensasse os obrigatórios martelinhos e alhos porros, não deixou de ser divertida, dado essencialmente a uma companhia primorosa. Regue-se a vinho à descrição e temos quase toda a ementa de uma noite bem passada.

Contudo la creme de la creme, foi quando se viu chegada à hora pirótecnica hard core, em que eu a contra gosto participei, não sem ter emitido uma quantidade desmesurada de impropórios mentais, bem silenciosos. Não gosto do cheiro da pólvora nem dos estouros de rojões, nem de fogos de desartificio. Parecem-me uma maçada perigosa e uma forma de queimar dinheiro a custo de alguma adrenalina primordial algo caduca.

Mas mea culpa, mea tão grande culpa, pois fiquei com um sorriso de orelha a orelha quando os balões de papel se alinhavam para o enchimento e lançamento em condições climatéricas desfavoráveis. O balão de S.João tem na sua essência algo de sublime, é uma espécie de programa espacial da populaça que envolve tecnologia do século XVIII. É um imaginário poético de iluminar os céus na imaginação de para onde viajara tal engenho. Lançar um balão não é simples e requer alguma colaboração e entre ajuda entre quem acende e quem segura a máquina, para que o ar quente a possa elevar, rumo a um desconhecido. Apesar de haver uma tentativa que culminou em insucesso devido a um lançamento prematuro, vimos vários que subiram acompanhados dos efémeros e breves gritos de alegria dos balonistas amadores.
Estou a ficar perito…

O solstício de Verão teve em mim um grande impacto. Dei-me o direito de pequenas excentricidades que me deram imenso gozo.

O dia mais longo, pareceu-me até bem curto. Logo após a jornada de liberdade pós-laboral, descendo vertiginosamente a linha de metro, rumei à praia para um por do sol assombroso. De um vermelho rasgado de sangue o astro-rei descia ao passo que os inspectores faziam a sua pescaria anual de navalheiras por entre as rochas. Não resisti a umas palavras de incentivo e deixei-me banhar no mar fresco e límpido no meio dos rochedos. Se não anoitecesse já por ali teria ficado de molho…

E quando a estrela da tarde brilhava intensamente, e a lua cheia confirmava ser um dia mágico, dei por mim extasiado e feliz por estar vivo. Algo que não tem necessidade de explicação causa-efeito, apenas se sente, porque a Vida é feita de pequenas coisas que nos aquecem o coração. Basta que os queiramos sentir. Bastam gestos, momentos, ou as vezes palavras amigas para os tons cinza serem de um colorido tropical.

Normalmente ão seria tão difícil acordar de manhã. Mas a história repete-se, nesta altura do ano. Deve ser o meu ritmo biológico a entrar no seu costumeiro ciclo noctívago ou algo semelhante.
Apenas me apetece dar um tiro no despertador que berra solitariamente durante uma hora. E só quando se finalmente este se cala, dou por mim atrasado e desperto a contragosto, ainda a praguejar que sonhava erradamente que era Sábado.

O meu calendário mental nunca se acostumará ao fim da Primavera. Deve ser defeito de fabrico com certeza.

Captar um momento é uma arte. Por isso a fotografia é algo que me começa cada vez mais a despertar o interesse apesar de o meu domínio da técnica seja inexistente.
Contudo algo me reforça ao tentar agarrar um momento efêmero, um pedaço de luz e cor que fogem e que são únicas. Nenhum raio de luz, nenhum sopro do vento, nenhuma nuvem, se repetem, exactamente naquele lugar, naquelas circunstãncias.

Segurar uma câmara fotográfica é como tentar aprisionar para a eternidade um facto, um retrato ou paisagem singulares. Assim podemos possui-los para sempre. Tentamos roubar da erosão do tempo algo irrepetível. Trata-se de uma vertigem enganosa, mas tambêm uma espécie de aproximação ao divino imutável – quase um sentimento religioso.

Por isso dou comigo a pensar em ângulos e luz e a suspirar não ter a minha companheira prateada à mão de semear como um turista japonês!

Arigato-san!

A cada dia que passa, redescubro velhas amizades que tinham sido edificadas em betão armado, e que julgava injustamente perdidas.

Fotografar a minha cidade, deu-me há tempos um renascimento espiritual, de observar a beleza das coisas porque passamos todos os dias e não lhes damos o devido crédito. Ver com olhos de ver, as linhas que embelezam o nosso quotidiano e não passar sem degustar com a visão a alma do espaço à nossa volta, atinge-nos. Faz-nos apreciar a beleza como um ser mais grandioso e agradecemos fazer parte desse ser, nem que seja pelo admirar.

Voltar a minha aldeia ancestral também se revelou uma abertura de horizontes perdidos. Perdi-me durante horas no esquecimento dos campos, sentindo a natureza rude e perfeita. O verde no granito e o granito borbulhando do verde, a perder no campo de visão, levaram-me a percorrer montes e vales, ansiando sempre por ficar sem respiração assim que atingia um cume mais distante. Reflecti e encontrei minhas raízes algures naqueles campos, chegando mesmo a ter naquelas rochas da Raia, Portugal num pé e Espanha noutro. Absorvi os cheiros e ruídos da minha herança.
Depois senti-me renovado. Capaz de prosseguir.

Sentindo o vento zumbindo nas minhas orelhas, agrada-me a sensação de perigo, quando percorro a linha do neo-eléctrico que está a ser construída entre a minha cidade e a minha praia.

As obras ainda estão atrasadas, mas as lages mal assentes das valas permitem-me atingir uns ofuscantes 30 km/h numa largura de 70 cm durante quilometros. A adrenalina consome o passeio onde nem sequer posso tirar os olhos da frente enquanto pedalo freneticamente.

É uma sensação única de liberdade e risco. Um salto em falso e só no outro dia de manhã poderão ver os meus ossos todos quebrados. Mas não consigo resistir.