ano

As últimas semanas têm sido invulgarmente felizes e plenas de luz. Se eu já estava resignado a ser um adepto fervoroso dos voltes de face do destino, numa roda da fortuna que não para de rolar a seu bel-prazer, então agora sou um fanático do caos. Sei que neste momento de giro, os meus planos mal se podem cingir a mais de um par de horas… ali mesmo ao virar da esquina pode estar a maior e a mais bela inesperada surpresa, como um desalento não previsto.

Sem planos navegar à vista, sem mapas de navegar com rota traçada, olho as nuvens de soslaio, cheiro o vento e deixo que a bússola fique menos nervosa. Logo, logo o vento vira e vai conduzir-me para um destino idílico, muito mais precioso do que eu poderia alguma vez supor. Ser bom marinheiro é também saber para onde o mar da vida nos quer levar e deixar que a bolina não nos pare. Não é bom contrariar os elementos quando eles nos sorriem, e estou a adorar viajar até onde mil planos não me levariam, mas só o mais feliz acaso me transportaria.

Mil conversas podem-se perder, mil frases podem ficar esquecidas durante anos num recôndito neurónio. Mas a música perdura, lembrando-nos de uma miríade de momentos, sentimentos, alegrias e até euforias.

Sempre gostei de música. Avidamente consumo música, tenho gostos eclécticos sem nunca comprometer a qualidade. Desde Jobim a Franz Ferdinand, de LSD Sound System a The Clash, tudo sem o seu espaço, nos meus inúmeros catálogos virtuais de músicas preferidas. Passado, presente e futuro que trazem melodias e memórias, conforto e alivio, esperanças de novas emoções fortes.

E verdade seja dita: nada como um iPod como companheiro de corrida. É garantia de novo record pessoal.

Quando a revi ao longe, não quis acreditar que todos aqueles sentimentos de puro deslumbre estavam reactivados. A sua beleza singela despertava de novo em mim aquela atracção intimidadora que eu sabia que em pouco segundos me iam tornar numa amiba embasbacada. Respirei fundo e segui em seu encontro. Não era mais tempo de não olhar olhos nos olhos uma mulher bonita.

Sonhos Urbanos

Kilas o mau da fita

De memórias suadas, carne mole, medos medíocres, vícios e nicotina, surge Kilas – aturdido pela pequenês do físico, tacão alto a deitar figura, de arrogância por medida.

Como um penetra entre os rich and the richest, teve acesso a convites para o concerto da Mariza na Casa da Música. Nunca fui apreciador de fado até ter ouvido um par de temas da Mariza, em especial a Loucura e desde então tenho sido um fã incondicional desta Diva.

Mais de que uma fadista, Mariza é a personificação de um fado que saiu da saudade da Severa e da alçada da madrinha Amália. O facto da Mariza ter orgulhosamente sangue africano nota-se na forma como ela interpreta o Fado.

O concerto em sí parecia mais um encontro de privilegiados, do que propriamente um local em que os fãs vão ouvir a sua interprete favorita. Isto porque não creio que determinadas personalidades do mundo político e social (e até alguns cromos) se tivesses deslocado até à Casa da Música para o privilégio de ouvi-la cantar.

Vestida de um deslumbrante mas espartano vestido bordeux comprido, Mariza parecia ainda mas alta e esguia, e irrompe logo com a Loucura para iniciar. Logo nos seduz com o seu invulgar à vontade em palco e capacidade de falar com a plateia, até brincando com o demasiado formalismo das gravatas e casacos de vison que por ali abundam.

Além de uma capacidade vocal sem paralelo, Mariza não é só uma mera fadista, ela introduz novos temas e interpreta de forma magistral todos temas, dando-lhe sempre toda uma expressividade como só ela o consegue. Ela gesticula, exprime-se para alem da voz e até dança o Fado. Dá ao fado uma transcendência de música do mundo e não a música de um lugarejo chamado Lisboa. É uma música com raízes étnicas, mas é muito mais que isso. Os violinos, a viola de arco, o violoncelo e a percussão são introduzidas, fazendo todo o sentido numa fusão que é fado, mas é muito mais que fado.

As transparências revelam a sua origem moçambicana, o seu crescimento na Mouraria, o seu caminho no jazz e a redescoberta do Fado. É é pela sua voz que o Fado se moderniza e se torna algo que os meus ouvidos deliram.

Pena é que os aplausos tenham pecado por ser escaços. Deslumbrante quando Mariza interpretou Summer Times como ninguêm e quando evocando uma tasquinha fadista, cantou em plenos pulmões sem microfones e a sua voz autentica e cristalina acompanhada às guitarras se fez sentir em toda a sala 1. Um momento inesquecível. Genial, rendo-me a seus pés!

Estava cansado e irritadiço, como uma criança que não dorme. Necessitava de um refúgio das insónias e do stress.
Não cruzei os braços e agi. Com alguma urgência que não entendia bem, com uma impulsividade nada comum.

E eis-me em direcção à serra dos meus antepassados, junto para as minhas raízes da raia em pleno dia de gelo. A viagem foi indecente, como a estrada. Mas eis que à chegada, acolhido pela noite e um vento glaciar regresso aquela casa de granito. De súbito a urgência da minha deslocação como que se desvendou, fez sentido. O meu tio completava setenta anos de vida e eu não o sabia. Inconscientemente a minha pressa tinha uma razão e isso era já um prenúncio de uma peregrinação bem-sucedida.

A casa estava quente apesar de o frio aparecer no exterior com um gume afiado e dilacerante. O amanhecer após uma noite de sono longo e sustentado como não tinha à muito tempo pareceu-me convidativo a mais uma incursão e comunhão entre o Eu e a imensidão do horizonte raiano.

Ao sair equipado para as caminhadas e intempéries fui atropelado por um caminhão TIR vindo directamente do árctico a ponto de ter que me reforçar com várias camadas de vestuário. E lá fui rumo a liberdade sem rumo numa caminhada nos planaltos agrestes. Vale após vale fui-me perdendo, absorto no silêncio perfeito de escutar o vento gelado, com a alma esvaziando a mente a cada passo, perdendo a noção de tempo. Logo o chão incrustado de geada, alternava com o gelo a que o regato transbordante se tinha transformado. O gado tentava ruminar o pouco feno pois os lameiros exibiam turfas de ervas congelada e aqui e ali uma ave de rapina esvoaçava, desesperada por um roedor para matar a fome.
Por pouco uma matilha de cães pastores de raça indeterminada, mas possantes não me tomava por um pilha-ovelhas ou lobo em pele de cordeiro.

Foi então que o vislumbrei lá longe. Cinzento e massivo, um enorme penedo reinava ao seu redor. Arredondado de um granito milenar da Serra chamava por mim, e sem perceber tomei o seu rumo saltando muros de pedregulhos instáveis e passado debaixo de arame-farpado.
Ao chegar a sua beira percebi que teria de o conquistar apesar das suas linhas circulares e esguias com mais de 5 metros de altura. Era como um conjunto de ovos graníticos alinhados. Após voltas e mais voltas, descobri-lhe os pontos fracos, um acesso quase inacessível para o topo das suas parábolas. A custo venci-o. E lá no alto pude ver quilómetros infindáveis, só, em comunhão comigo mesmo e com a natureza. Para além do rendilhado verde-escuro, traçado de linhas cinzas, cresciam as montanhas espanholas com neve nos cumes. Atrás o Sol brilhava acima dos últimos cumes da Estrela. Senti-me rejubilar e gritar de alegria por aquela conquista. E não fosse o corpo dar sinais que em breve estaria em precisar urgentemente de líquidos quentes por ali ficaria.

De volta as lides familiares, aproveitei para dar um passeio pela tarde até às terras da família munido com o meu olho mecânico, mas o frio crescia e as nuvens prometiam o tom escuro. Ao regressar o vento cortava as orelhas e a face parecia um mísero pimento dorido.

Ao anoitecer nevou. Primeiro a medo, pequenos flocos minúsculos. Já escuro, os flocos eram espessos e um manto branco pousou aliviando o frio e paralisando o vento. Branco níveo, buscava reflexos florescentes de azul. Berrava por dentro de emoção.
Na manhã domingueira na antecipação coloquei-me em novo percurso, desta vez calcando uma camada de neve já compactada, sentido o luz branca e intensa, perdido e zonzo com o espectáculo único. Frio por fora e quente por dentro, vi a neve escoando-se lentamente à medida que o Sol subia, calmo e sereno.

Compreendi que me falta espaço na cidade, onde os horizontes são cortados e curtos. Na aldeia não sofro da claustrofobia do horizonte. Nada esconde o limite do nosso olhar. E nada como o silêncio que nos acolhe e envolve na natureza para relaxar a alma.

Foi sem dúvida um Sábado diferente. Ainda a ressabiar de uma noite agitadíssima, eis-me madrugador, com muitas horas de sono é dívida e neurónios ainda motivados a Gurosan, a tentar pedalar.

O que seria um fim-de-semana desportivo, tornou-se uma festa de encontro de novos amigos num local solarengo e místico, onde as ondas chocavam intensamente contra as rochas formando fogos de artificio de espuma. R. é um polo dinamizador, um carisma e encanto a que só se pode devolver genuína amizade. Assim como aos amigos que foram chegando ao longo da tarde dos mais variadas e longínquas origens. Subitamente tudo se tornou uma tarde de copofonia de loiras de esplanada… estilo Chopp.

A noite foi o reverso da medalha, em que os neurónios deram tilt apesar de estar com o irmanzito das ilhas a ver o nosso glorioso a portar-se miseravelmente. Depois de anoitecer tudo se tornou absurdamente mau!

Acho que a teoria do Búfalo, em que os neurónios mais fracos são abatidos primeiro, – neste caso através de uma analogia precária relativa à bebida – é mesmo uma piada de mau gosto. Nesta semana sinto que só os meus búfalos-neurónios mancos continuam a correr nas pradarias de uma mente incendiada. O resto da manada ou já tem as peles a secar ou pôs-se a monte

Eu sei que ondas revivalistas não surtem grande efeito. Nem efeito, nem boas experiências. Nem em termos musicais nem festivos é aconselhavel reviver o passado, por muito bom que esse fosse.

Tal não foi o caso de rever um muito velho e querido guru de noites musicadas e dançadas. Rei e senhor absoluto do electroclash, pioneiríssimo em Portugal desse estilo musical que tanto amei, (e julgo ainda amar), voltar a assistir a uma actuação do DJ Kitten era ao mesmo tempo uma obsessão e também um enorme receio. Temia não gostar, achar os ritmos e discos demasiado riscados, a peça demasiado previsivel.

Mais uma vez o club Gourmet salvou-me, num acto de total abnegação, o meu mano mais novo insistiu para uma noite de aposta em grande. Sempre como dois mosqueteiros, N. e eu seriamos um veteranos num Kitten na terra medieval. S. essa incrível amiga e cozinheira talentosa, deliciou-nos com um bacalhau irrepreensível acompanhado por várias botelhas de um surpreendente Quinta do Javali que fiquei extremamente fã. A companhia e camaradagem que valem 6 estrelas.

Chegados ao local de actuação na hora H, fomos presenteados como os únicos veteranos indefectíveis com uma sessão que merecia um selo de aprovação a ouro, mesmo passados todos estes anos. Um repertório totalmente novo, mas na mira do que sempre foi, um som brilhante de descontracção misturado com um delirio que faz dançar até os paralíticos. Valeu a pena ser um revivalista, pois fui agraciado com uma noite muito bem passada.

Pena ter sido curto e com a dosagem de Gin Tónico a carburar lá fomos dar os parabéns ao amigo João pela sua carreira. Em breve há mais. E o resto do noite foi muito zumbi

A maturidade não é um toque da varinha mágica da fada da meia-idade. É um estado de espírito que se constrói a pouco e pouco, baseado na nossa vivência, da nossa aprendizagem.

Quem no correu riscos e não se aventurou na grande maluqueira que é a vida, nunca pode ter uma consciência madura, pois não sentiu na pele os grandes sucessos ou as falhas miseráveis que o destino nos reserva.
Por certo nunca fui jogador. Por isso muitas das paradas altas que são precisas de por na mesa me falharam durante muito tempo. Demorei a entender a arte do bluff e de como pagar para ver, mesmo quando não se deveria ir a jogo. Faltou-me tentar limpar a mesa e sair depenado.

Mas como diz o ditado, antes tarde que nunca. E nos últimos anos acho que deixei nas mesas de Póquer muitos pares de calças. Mas é só assim se aprende a jogar.

Estar frenético e simultaneamente introspectivo é um dos estados de espírito que me ocorrem de tempos a tempos. A corrida de mata cavalos surge singularmente quando eu a menos espero, com fortes tendências para gravíssimas lesões.

Não esperava um fim-de-semana alucinante, mas a busca por um aconchego levou-me a iniciar uma ruta del bacalau nada própria para a minha sobejamente idade anciã. Durante a semana estive como um saltimbanco enlouquecido a tentar malabarismos complicados. Ter as três bolas no ar é já um karma que me persegue desde há anos e que tem resultado invariavelmente num fim de espectáculo lamentável com três bolas rolando no chão. Pior ainda, sentia um forte e inexplicável sentimento de que o céu me iria cair na cabeça – de algo realmente errado me escapava de controlo.

Nesta perspectiva desorientada nada melhor que mergulhar de cabeça e lançar-me as feras. Foi o que fiz, e pelo menos tive a fortuna do meu lado, acompanhado por companheiros de combate veteranos nas andanças boémias.

O núcleo duro club gourmet não me deixou saltar para o frenesim, e deu-me rapidamente um remédio pantagruélico eficaz. Quem diria que o Chease Cake de tangerina fosse semelhante ambrosia. A anestesia local foi administrada na perfeição com uma grande abundância de louras e ainda estávamos no Sábado de madrugada.

O dia seguinte não foi excepção, com requisições proibitivas, onde tive que optar por convites menos exigentes do ponto de vista emocional. Mas as surpresas ocorrem e vi-me levado para uma cave de boa memória, agora transformada em reduto gótico pós moderno, saído directamente do imaginário da raínha dos malditos. Não admira que o Imperador se oponha ao Louco, e o Diabo ande sempre perto da Roda da Fortuna.

A passagem de ano acarreta a esperança frenética das resoluções para o novo ano. Planos e mais planos, expectativas e até por vezes alguns desajeitados desejos de mudanças radicais.

Enquanto se engolem as passas despejam-se atabalhoadamente votos de um futuro melhor, para os outros e para nos sem aprofundar muito o seu significado, e quando na pressa se engolem as últimas passas para acompanhar as doze badaladas damos conta que ruminar as uvas secas ao Sol não é assim tão agradável.

O que é agradável, isso sim é a predisposição de efectuar mudanças ao nosso life style a acalentar que é exequível, como camaleões, mudar os nossos traços e destinos. Talvez as resoluções de ano novo sejam apenas e só isso: acreditar que há algo melhor o nosso alcance.

Por bem ou por mal alguns volte-de-face já me caíram do céu este ano. A continuar assim este circulo ao redor do Sol promete ser agitado. Não será propriamente como na música pouco conhecida Death or Glory, em que se ainda temos um crash and burn, mas há muito em jogo. Felizmente há esperança de ouvir uma vez ou outra um Hallelujah como epílogo.

Após um longo período de procrastinação, de algumas atribulações e peripécias, volto a escrever neste diário. Não quero deixar de tentar esboçar alguns textos e relatos desta vivencia de meliante encartado, apesar de alguma preguiça e manifesta falta de tempo.

Não é pelo começar do ano ou pelo culminar do Inverno que interrompo o meu silêncio voluntário. Trata-se apenas de uma coincidência temporal, sem as influências tantas vezes palermas das resoluções de ano novo. Move-me talvez a necessidade de desabafar, de compartilhar com todos e ao mesmo tempo com ninguém em particular, nada em concreto. Tão só a necessidade de comunicar de forma intimista e quem sabe também a necessidade de estabelecer uma caixa do tempo, que daqui a uns anos vou desenterrar. Nessa caixa do tempo vou colocando pequenas nuances e chaves secretas para os meus pensamentos, um backup para as minhas memórias inconsequentes, para que num futuro remoto, vejam a luz do dia salvas do esquecimento.

Não sei se viajarão no tempo que tudo emudece e refina a essência. Serão com sorte pensamentos colocados numa garrafeira, amadurecendo para que num momento ideal sejam abertos e servidos em copos de cristal, com esperança que a reserva se tenha tornado um vintage. Com sorte talvez. E tudo depende da colheita. Esperemos que seja boa…

Aquela bela sonata ainda ecoava na minha mente, mas nada me demoveria de estar absorvido em outros horizontes. Os meus pensamentos não acompanhavam a melodia que o piano acabara de expelir. Continuava a fixar o horizonte longínquo, como se um pedaço da minha alma estivesse perdido na imensidão desta distância.
Estava lá longe, no outro lado do oceano, onde as vagas e ondas do mar se fundiam no azul plano da ilusão da esfericidade da terra e bem onde a vista não alcança. Era lá que focava a minha mente e olhar, resignado e triste.

Sonhos Urbanos

“Por certo aquelas pernas esculturais sustinham o peso pluma do seu corpo delgado. Bastou-me um vislumbre da sua silhueta para que eu sentisse um forte baque na base do meu crânio e imediatamente o meu coração começou a bater descompassado. Era o material de que os sonhos são feitos, por assim dizer.“

Sonhos Urbanos

A música sempre foi importante para mim. A música para mim é um modo de extrapolar a alegria ou de travar a tristeza, um remédio sempre pronto a ser administrado directamente do ouvido e que chega ao cérebro numa dosagem diária.

Mais importante é que tenho a mente sempre em busca de doces novos, palatos revigorantes de melodias frescas. Uma fome insaciável. Amar a música não e só agarrarmos as canções da nossa vida, mas sim deliciar-se com a textura e genialidade de novas batidas ou vibratos. Admirar a deambulação jazzística, ou as batidas electrónicas, os fantásticos efeitos vocais ou ainda até a velha gaita-de-foles. Do D&B ao Raggie, do Euro Dance ao Acid Jazz.

Porém nem tudo que vem à rede é peixe. Demasiadas vezes a música de consumo não passa de um hambúrguer de consumo imediato, para entupir as veias, e neste caso os tímpanos. Há quem prefira um hambúrguer a um coq au vin. Eu não.

Fico triste que se designe como música portuguesa o género musical dito pimpa. Não concordo que aquilo seja música, mas sim um produto embalado. Uma caixa de som de 1998, um estúdio, um microfone. Basta isso. Uma espécie de cachorro quente em que só variam os condimentos que a senhora da roulotte coloca em cima e que apenas serve para disfarçar que a salsicha é das mais baratas possíveis e o pão é de anteontem. E assim se faz o Pimba em Portugal.

Habitualmente termino do Verão coloca-me num espaço de ansiedade e melancolia. Setembro some-se rapidamente e os dias encolhem passo-a-passo anunciando o fim do estio e o inicio da reentre do frio.

Este ano contudo o Verão foi atípico, aguentando-se de unhas e dentes por Setembro fora. Isso evitou-me aquele sentimento ríspido do início do Outono e de me sentir cilindrado pelas primeiras ausência de Sol.

Fazendo o balanço contabilístico dos últimos meses não posso deixar de considerar que provavelmente todas as erupções e descargas emotivas que me assombram constantemente, tornaram-se menos intempestivas. Como que se a alma estivesse já calejada de um fluxo de atribulações tão permanente que agora qualquer tsunami não passasse de um ligeiro ondular.

Qual homem-bala, presencio a minha personagem, como alguém que se habituou a ser cuspido de um canhão a 160 kilómetros/hora para gáudio da multidão num circo com uma assistência cada vez exigente. O perigo e as lesões tornaram-se um local comum tão habitual que cada disparo e mais um ribombar rotineiro do maior espectáculo do mundo.

Existe um país onde um cidadão de 81 anos depois de ter cumprido 10 anos de mandato como Presidente da República e de ter estado 10 anos de molho decide candidatar-se novamente para salvar o país de um fantasma, passando por cima de um amigo de longa data.

Existe um país onde três candidatos autárquicos com fortes probabilidades de vencer estão indiciados por processos fraudulentos e uma outra candidata a candidata com mandato de prisão emitido e foragida no Brasil, tem toda a cidade a aguarda-la tal qual D.Sebastião.

Existe um país onde o único escritor galardoado com o prémio nobel da Literatura vive no país vizinho.

Existe um país de onde é oriundo aquele que é considerado o melhor treinador de futebol da actualidade, cujo seleccionador nacional é estrangeiro.

Existe um país onde o maior sucesso nacional do ano é um disco de originais de um músico que morreu há quinze anos.

Existe um país onde os dois guarda-redes da selecção nacional são suplentes de dois guarda-redes da mesma nacionalidade nos respectivos clubes.

Existe um país onde o nome da mascote do principal evento desportivo alguma vez organizado começa por uma letra (k) que não faz parte do seu alfabeto.

Esse país só gosta dele próprio e da sua bandeira quando vem alguém de fora jurar a pés juntos que somos bons.

Esse país estranho é o meu país.

in minha caixa de correio

Já não é recente a minha aventura marítima. Contudo não posso esquecer a manhã em que me iniciei no que eu supunha ser um entedioso processo de dar banho à minhoca.
Com um pequeno grupo, urbano e relativamente bem armado, fui ao encontro de uma nova experiência. Fazer algo de novo ou relativamente pouco seguro, faz-me sentir vivo e pulsante, por isso quando surgiu a hipótese de ir a uma pescaria em mar-alto num barco de pesca artesanal não podia sequer pensar recusar. O convite caiu-me no colo durante um fim-de-semana bastante animado, através do inspector P. E da sua trupe.

A medo lá acordei cedo e na companhia do Inspector D. lá me fiz a estrada meio a contra-gosto. A ideia de navegar numa casca-de-noz motorizada não me parecia muito convincente. Pior ainda, as minhas ideias pré-concebidas acerca da arte pescatória, ou dos pescadores de taínhas, não auguravam nada de compensador.

Perante a luz de um Sol a despontar, chegamos ao local indicado, onde conheci duas pessoas exemplares, dois pescadores minhotos de enesima geração, dois sujeitos com a honestidade e simplicidade acolhedora. Logo fomos embarcados ainda na praia e rebocados por um tractor para o mar.

Mar límpido e calmo, envolto em bruma matinal, logo fomos surpreendidos pelo aroma do mar salgado, onde um motor mais próprio para lanchas rápidas cortou num branco de espuma e fervilhar ondulante um rasto que se perdia numa nevoa distante. Era uma sensação única, sentir o leve pinchar do barco à medida que as milhas se sucediam, e nos afastávamos para um outro universo, só conhecido dos lobos do mar e dos mestres da faina marítima.

Sem receios de enjoos, pois o mar pareceria um imenso lago senti a brisa marítima, num momentos emocionantes em que bandos de gaivotas e umas aves marinhas negras, ao estilo de fragatas levantavam voo assustadas pela nossa passagem. Senti a liberdade de uma aventura no mar, como que uma chamada ancestral (quem sabe familiar), de um retorno à imensidão do oceano. Quando paramos senti a quietude desértica do mar, num silêncio que nos permite ouvir as ondas e o saltitar frenético dos cardumes de sardinhas. Senti um aperto e uma exaltação que se sente quando nos parecemos vivos, apreciando algo que é único.

Pesquei pela primeira vez na minha vida. Retirei do mar uma cavala, com alguma angustia por matar o bicho, mas foi tão fácil puchar pela linha que não queria acreditar. De facto eles picavam tudo, até os anzóis. O inspector D. fartou-se de dar à cana e acabou por ser um recordista.

Para finalizar a manhã, um surpresa. Um bater na água ao longe repetia-se. Passou ao largo um grupo de golfinhos fazendo os seus saltos majestosos fora de água, numa frenética caça a um cardume. Foi entusiasmante de observar mesmo ao longe um grupo de golfinhos predando organizados em grupo, como fazem quando não estão enclausurados em tanques pelo homem.

Quando de regresso a terra firme, felizes pela faina fomos ainda agraciados por um jantar pago pelo nosso mestre-guia que não quiz nada em compensação por um dia de trabalho perdido. Assim é o acolhimentos das gentes generosas da Apúlia. Dá que pensar.

E depois seguiu-se a bela patuscada com o pescaria, mas isso foi outra história.