Dias

Afinal é possível aguentar um embate com a ressaca de parar de fumar, desde que estejamos com alguma força de vontade. É certo que estou com os nervos em franja, que todo o corpo parece meio dolorido e que na minha boca há invariavelmente um chiclets ice de canela a libertar algum sabor para disfarçar qualquer vontade.

É estranho sentir aqueles flashes momentâneos de junky, numa espécie de pânico inconsciente de que agora era a altura que eu pegava em mais um cigarro. Hábitos encerrados bem fundo na consciência, mas que não resistem a trinta segundos de introspecção.
Nesta minha tentativa empolgada para deixar de fumar sigo uns princípios simples:

  1. Prometer a mim mesmo que vou chegar ao fim do dia sem tocar sequer em algo que tenha folhas de tabaco (cigarros, cigarrilhas, charutos, charros e beatas)
  2. Evitar rapidamente qualquer local que tenha o odor fétido do tabaco a arder; não olhando sequer para qualquer tabaco, maço, ou até vending machines.
  3. Inventar mil e uma quebras de rotina, desde as mais singelas, até às mais absurdas ocupações, submetendo o corpo e espirito a constantes situações de adaptação. No fundo descompensações constantes.
  4. Exercícios de respiração, desporto, insistência em puxar até ao limite o corpo.
  5. Bebendo água desmesuradamente, evitando o aumento de apetite e outros desconfortos.
  6. Mantendo ocupada a boca (mascando, roendo, mordendo, etc.), com movimentos e sabores, incluindo uma higiene oral capaz de levar à erosão de esmalte.

Para já os pulmões começam apenas a fazer uns queixumes, uma tosse ainda medrosa de alivio, num início de desintoxicação orgânica que leva anos a libertar o alcatrão. Está a valer a pena.
Tenho consciência que o pior periodo é sem dúvida quando se chega às semanas dois e três. O espírito e o empenho começam a quebrar e pecadilhos rumo à recaida são vistos de forma menos grave e surgem uma data de descupabilizações face a diminuição da força de vontade, numa epóca em que ainda não nos libertamos da dependência organica de forma consistente. É dessa fase que tenho mais medo.

Não gosto de me torturar. Não tenho vocação de masoquista, nem de vítima. Mas para superar algumas vicissitudes e entraves é necessário reportar as nossas carências e pecadilhos, o fim e exorcizar os nossos demónios da dependência de tóxicos. A humilhação e a partilha das nossa fraquezas e a melhor forma das enfrentar, como nos AA, construindo uma base sólida, um estofo de humildade reconhecendo os erros e a nossa fragilidade.

Eu sou tabagista. Fumo há 15 anos. Comecei a fumar embebido nas atitudes rebeldes de adolescência, mesmo consciente dos riscos do cigarro. Era um hábito social e melhorava a aceitação num grupo, numa perfeita idiotice de conceitos dos late 80s. Viciei-me. Tornei-me dependente de nicotina muito rapidamente, nessa necessidade de sorver ar queimado, repleto de um cheiro nauseabundo que rasga a garganta e brônquios. Sem esse tossir o corpo revolta-se, chamando por mais veneno, e a cabeça com o tique do hábito de mão faz soar todas as campainhas na ausência daquele tirano, envolvido em papel branco e castanho. Cheguei a levantar-me da cama para fumar, e fumar antes do pequeno almoço.

Já tentei várias vezes parar com este vício, sem muita convicção, apenas por umas frustrantes semanas de profundo nervosismo, catatónico, dopado, ansioso. Ressacado. Humilhado. Frágil.

Hoje torturo-me numa última vez. Só quero chegar ao fim do dia sem ter levado um cigarro à boca. Um dos 20 que levava diariamente à boca e acendia maquinalmente como se fosse um acto tão normal como respirar. Estou já a sentir os primeiros ecoares fisiológicos da abstinência, da privação de um toxico há muito embebido no meu organismo que está por isso debilitado. cancro dos pulmõesDurante semanas a coisa vai piorar. Tenho que me afastar de sítios poluídos e locais cheios de suicidas com cigarros à arder. Tenho que deixar também o café, para reduzir a necessidade desses hábitos de simbiose.

Não foram esses anúncios parvos nos maços que me decidiram a tentar a luta diária para deixar de fumar. Todos os fumadores estão cientes dos riscos, mas não têm uma sapatada nas costas com força, um empurrão, um apoio que os acelere para essa libertação da dependência física e psicológica da droga vendida pelo estado. Eu hoje tenho esse empurrão esse apoio, e acima de tudo essa vontade de me libertar antes que o meu sangue deixe de receber oxigénio.

Já chega de alcatrão e monóxido de carbono nos meus pulmões. Já estou farto de ter um ticket para a lista de espera para um cancro do pulmão, de um AVC, de uma angina de peito ou de uma bronquite crónica, numa morte mais próxima e sofredora. Já estou farto de gastar dinheiro num produto que de facto não necessito e apenas piora a minha vida. Já estou farto do odor nauseabundo na minha casa, no meu carro, na minha roupa. Já estou farto de ter o meu olfacto e paladar obstruídos e dormentes. Já estou farto de não ter fôlego. Já estou farto de ser um jogador da roleta-russa!

As últimas semanas têm me dado uma série de lições de vida muito importantes. Novos valores pessoais, uma nova capacidade de apreensão e sobretudo um gosto mais elevado pela vida.

Mesmo assim estou a passar o rebound habitual do fim do Verão e começo do Outono, como se estivesse também a murchar como as folhas castanhas-douradas nas copas das árvores esperando por cair finalmente.

Balanceio freneticamente entre a alegria desmesurada e a nostalgia do fim de estação.

II – Frases que se perpetuam

Esqueço-me que as palavras também se materializam, que passam de um pensamento a um estado visível de transmissão. Quando são ditas, as palavras apenas passam à distancia que o som e o ar as permite transportar e são actos efémeros audíveis, completamente momentâneos e raramente reproduzíveis novamente na sua essência, timbre como são proferidos e conotação com a língua, a boca e os lábios o emitem.

Quando as palavras passam por uma caneta, uma máquina de escrever, um teclado, tomam outra alma, são já um compromisso materializado de um pensamento, ideia ou emoção. Podem ser lidas repetidamente e os seus significados circunscritos dissecados, pondo a nu toda a sua expressão e mensagem.

Mesmo que sejam destruídos o seus suportes, como o papel, ou estas pacatas páginas, essas palavras atingiram uma substância eternizada que se perpetua, sendo eterna mesmo que já não existente, pois ouve uma prova palpável da sua presença.
Essa marca de que as palavras são para todo o sempre fustiga hoje a minha leveza de escrever. Toda a ânsia e escassez de tempo com que matraqueio o teclado, não me dá a lucidez de transportar a clareza do que pretendo enviar numa simples mensagem.

Quando as minhas memórias e emoções são aqui depositadas não estão escritas na areia à espera de uma onda que as apague, nem estão só marcadas a canivete na cortiça do tronco de uma árvore. Essas memórias e emoções serão depositadas transportadas numa capsula do tempo, para sempre incorruptíveis num vácuo temporal. E quando é assim, deixa uma efeito semelhante a uma ponte para a eternidade e que depois de ser lançada não pode mais ser alterada, rectificada ou repensada, como a placa que viaja na sonda Pioneer 10 a 12,5 mil milhões de kilometros da Terra, uma mensagem da humanidade que muito provavelmente sobreviverá a extinção da humanidade e civilização que a concebeu.

I – O peso das palavras

As palavras têm muitas vezes um significado muito peculiar e forte, dependendo em muito do momento e do contexto em que são pronunciadas ou escritas.
Eu infelizmente dou excessivo valor a algumas e menosprezo outras frequentemente, dando-lhes uma relatividade muito própria na minha personalidade muitas vezes sombria. Esqueço-me que as palavras são meros objectos de transporte e significação de actos e imagens, que apenas pesam uma tonelada, ou são leves como uma pluma, em função do que vai na alma de quem as solta ao vento.

As palavras devem ser medidas apenas quando chegaram ao chão, desnudas da emoção da pressa de serem ditas ou escritas, funcionando apenas como um marco momentâneo de circunstancias e alvoroços. Quando tal acontece, a sua beleza ou fealdade sublima-se transportando-nos para significados mais profundos dos pensamentos e emoções, num campo intervalado, sem maquete, luzes, câmara e acção.

Não existindo o barulho nem as falhas de um pensamento irreflectido e contingente, é fácil por de lado aqueles conjuntos de vogais e consoantes, de verbos, pronomes e sujeitos. As palavras são então coadas de sarcasmo momentâneo, dissolvidas do vocabulário impertinente, decantadas de impuseras gramaticais, escoadas de subterfúgios de incompreensões.

Depois da alquimia da purificação das palavras fica a mensagem velada, o seu verdadeiro significado. Onde estava um insulto, pode antes estar um pedido de compreensão; onde estava um impropério estava antes uma chamada de atenção; onde estava um rosnido estava antes um pedido de afecto.

Tenho que começar a fazer uma alquimia às palavras que me ecoam, agarrando a sua essência, não me deixando levar no seu tom áspero, e antever por detrás de um grosseiro véu, o linho, o veludo, o cetim e a seda que transportam. Desejo também que a minha língua e a minha caneta se desprendam, não calculando sempre os quilos, gramas e miligramas que as frases que profiro contenham, de forma a não me prender, nem me conter de soltar gritos e actos falhados ou palavras feridas, pois elas são um podre fruto parido de cuja semente floresce num novo e luxuriante jardim.

Estou descontente com o meu próprio corpo por me deixar absorto e quase incapaz de reagir ao que me é proposto e desejo fazer. Tenho uma urgência anormal em tentar repousar ou dormir que depois se traduz numa mera apatia de tartaruga, que me enerva a ponto de sentir raiva das minhas carnes e dos meus ossos.

Desejo recuperar o “pique“, melhorar a forma física, voltar a voar como um anjo sem asas, deixar o vicio degradante do tabaco que me tolhe os pulmões e a auto-estima. Desejo não mais acordar cansado, não mais transpirar sem razão aparente, saciar-me mais casualmente sem necessidade de carne assassinada.

A minha saúde foi descurada durante demasiados anos, assim como os meus neurónios submetidos a duras provações e afogamentos em gin tónicos desmedidos e mal servidos. Agora que não posso reviver a energia da juventude tenho que me contentar com o minimizar dos estragos nas veias, arterias, pulmões, pele, vista, ouvidos, coluna, articulações, coração, mas essencialmente na alma, para que se mantenha jovem mesmo quando as rugas e o cabelo grisalho (ou a falta dele), assim como os carnes descaídas sem músculos forem o meu habitat físico.

Em breve começarei, um tardio mas exigível, plano de recuperação da fachada e ruínas deste edifício, antes que a fadiga estrutural ameace toda a contrução de derrocada.

Chegar ao fim do dia parece uma crimera agonizante após um fim de semana tão envolvente. Sinto-me numa ressaca assustadora após ter viajado ao sabor de um químico perfeito, tomado numa forte dosagem, capaz de ter feito a minha mente relembrar a origem primordial de todos os sonhos.

Meus músculos retorcem-se, mas meu espírito apenas quer uma nova viagem de 860 km, sibilando sem parar as vozes sussurradas que inflamam a minha audição, das recordações do tacto ardente, da embriagues do olfacto, do êxtase do paladar, da visão paradisíaca. Tudo que sinto é que desejo o fluir nas minhas veias repetidamente dessas sensações supremas.

As coincidências comovem-me. Por isso deixei de acreditar na possibilidade natural de coincidências, em explicar com o auxilio da lógica e da matemática as questões que seriam do âmbito da teoria das probabilidades.

Não vale a pena mergulhar no mundo da estatística para compreender aquilo que não é passível de ser explicado per si. Claro que poderia acontecer, mas o facto é que aconteceu naquele momento, naquela exacta ocasião e não noutra, revelando um impacto diferente, alterando a nossa vida. Não será isso antes um sinal, um encaminhamento para um destino, para um desencadear de acontecimentos que necessitamos agarrar, por nossa opção ou então fechar os olhos e apenas achar o quanto foi estranho.

É como sentir o pêndulo vindo na nossa direcção, sentindo o tiquetaquear do relógio imenso, pressentindo as badaladas estridentes da mudança da hora. Podemos apenas esquecer que o tempo nos chama, e que os ponteiros das horas e minutos apenas tomarão posições diferentes ou podemos optar por começar uma nova hora.

O Sr. G. tirou um mês de férias para visitar a irmã que não via há 24 anos e que vivia no Brasil. Queria surpreende-la voando até seu país sem avisar, tendo comprado o bilhete para dali uns dias, após um par de dias de férias. A sua irmã teve a mesma ideia, e por um dia, apenas um dia de diferença, após 24 anos teriam voado em direcções diferentes desencontrando-se.

O tempo de nada serve para diferenciar positiva ou negativamente o que seria, ou o que deverá ser. Apenas lhe pode dar um significado maior e mais urgente. Hoje sei isso e mais que nunca não acredito em meras coincidências.

Não nos devemos apegar às recordações nas alturas difíceis, mas quando as lembranças são recentes e intensas e nos dão tanta força e coragem acabam por ser um sustento, um escudo contra as intempéries que se abatem sobre nós.

Julgo que o destino abriu-me muitas portas nas últimas semanas, e mostrou-me insistentemente sinais de que terei uma caminhada nada solitária, abençoada e repleta de satisfação. Nada que fosse capaz de procurar com esperança de encontrar, mas que se deparou comigo como se eu fosse impelido em seu rumo de forma inevitável.

Agora que a distância atormenta, num desconforto de que parte de nós ter sido retirada, e que não estou em minha casa, nem tenho o meu carro, e todas as coisas que considero minhas, mas que são um mero nada, sofro uma espécie de desterro que me recorda do que me faz pulsar.

Neste exílio de forçado, resta-me, como a todos os exilados, a esperança de voltar a pisar a terra que é nossa, acalentando ferozmente essa saudade forte para que ela ressurja em vontade consumada do retorno.

um amor tão grande é capaz de nos dar a beber essa esperança, esse fulgor de vida, como se estivesse predestinado a existir e abraçar-nos, fazendo que o mundo cesse de ser e acontecer ao seu redor.

Com as chuvas cinzentas de Outono, forçando já ao frio e as folhas que vão cair da árvores, exilado e longe dos confortos, surjo mais forte e pleno, mais intransigente, mais iluminado numa certeza que me aquece.

Hoje adormeci. Deveria ter acordado a horas, como uma pessoa responsável e empreendedora, capaz de despertar sem despertador, pulando da cama energéticamente e sem hesitações. Mas infelizmente não sou assim e maltrato-me psicologicamente todas as manhãs, na vã tentativa de me convencer que hoje vou para a cama mais cedo e amanhã e irei acordar meia hora mais cedo. Assim teria um pequeno almoço regrado e saudável, até suficientemente languido antes de entrar no carro e pacientemente enfrentar o trânsito de forma resignada e serena, como um pequeno obstáculo do dia-a-dia.

Mas não. Eu tinha que ser aquela pessoa que tem uma poderosa cola entre a face e o travesseiro durante o período matinal, e que apesar dos berros estridentes do rádio-despertador sem tons baixos, aprecia um minuto extra entre os lençóis. Depois dá-se-me um rebate de consciência e salto da cama a contra-gosto, já num atraso desesperante. Depois corro para o banho, corro para a cozinha, corro para o quarto, corro no carro, parecendo um maníaco da estrada sedento por galgar os asfalto, circulando na faixa da esquerda.

Hoje foi diferente. Fiquei fulo, mas não me maltratei com esse atraso. Senti-me mal por ter falhado em algo que eu não suporto falhar, ou seja na pontualidade e responsabilidade, mas apesar de tudo, não senti aquele aperto e ansiedade de no íntimo me auto-fustigar num misto de revolta e frustração. Fiquei calmo, como se de certa forma tenha já estabelecido intimamente que não é a correr que se vai agarrar o que se nos escapa, arcando as culpas conscientemente, entregando-me a uma penalidade sem esbracejar.

Apraz-me pensar que de facto alterei já parte da minha consciência, assim como me tinha proposto, mesmo que de forma inconsciente. No meu interior não está sempre um vulcão em erupção como dantes, expelindo lava convulsivamente, mas sim um rio com rápidos, cataratas, mas também com águas serenas e que faz a sua caminhada orgulhosa até ao oceano.

Essas águas correm lentamente no leito do rio, às vezes mais turvas e rebeldes, às vezes quase estagnadas, fruto de uma percepção mais atenta, mais focada para um quadro mais grandioso, do que para um pormenor cuja importância foi excessivamente infeccionada. E tudo se deve à luz que sinto, que brilha cada vez mais forte e faz-me contemplar o que realmente tem importância.

montanha russa

É reconfortante sentir que estou numa montanha russa de dimensões épicas, capaz de em questões de minutos levar-me desde o quinto dos infernos até ao sétimo céu .

Todos esses impactos gravitacionais e goladas de adrenalina, fazem-me ter consciência que tenho sangue a pulsar nas minhas veias, à medida que subo vertiginosamente e desço abruptamente.

Faz-me viver, sentindo a comoção acelerada, repleta de bombadas de sangue a ferver, arrepiado e tremendo pela deslocação arrebatadora que tanto desejo.

Dou-me conta que muito se passou há minha volta nos últimos meses sem que eu tenha aberto os olhos convenientemente. O Verão sempre me deixa algo desatento, absorto no calor, no Sol, na alegria de desfrutar a vida, e esqueço-me das pequenas coisas ao meu redor.

Acabo por reparar menos nos adereços do palco em que nos encontramos durante o estio. Agora que a poeira assenta e se transforma em lama outonal, há mais tons cinza que cegam menos a vista. Por exemplo: só ontem reparei que o meu local de trabalho é paredes meias com um apartamento de meninas universitárias que metem anúncios no JN na secção de lazer, muito embora em ache que nenhuma delas está matriculada em qualquer faculdade ou instituto de ensino…

O facto do pessoal do armazém, dar bastantes sinais de agitação, trocando bastantes comentários entusiastas sobre o nº 49 tinha-me passado totalmente despercebido até agora, apenas achando estranho aquele frenesim de sorrisos malandros.
Como é que posso estar tão desatento nesse campo e em tantos outros campos do que me rodeia, permitindo-me estar algo alheio ao mundo da realidade que me rodeia?

Sinto uma vontade havida de voltar a rever tudo, apurando todos os sentidos para focar a minha atenção no que me rodeia, não permitindo que algo de importante fuja ao meu conhecimento. Quero estar atento e desfrutar como deve ser a minha esfera, agora que tenho a maior razão do mundo para isso. Quero vibrar a todos os momentos, desperto, consciente de cada pequeno pormenor, por mais pequeno que ele seja.

Estou ainda embriagado por o mais puro dos néctares. O seu sabor escorre ainda lentamente pela minha boca, prendendo o meu pensamento nesse gosto profundo de prazer, plenitude e felicidade.

Estou a beber o néctar dos deuses num cálice trasbordante, capaz de saciar o insaciável, convicto de que nada mais necessito, além dessa ambrósia divina que me transporta ao Olimpo. Que mais posso desejar?

A vida nunca nos deixará de nos surpreender. Esse é um postulado fundamental da nossa breve passagem por este mundo. As surpresas que a vida nos reserva são tão inusitadas e inesperadas, tão abruptas que não as podemos antecipar. Só as podemos abraçar e sentir que uma nova etapa recomeça, reconhecendo que o destino nos reserva um caminho diferente do que tínhamos antecipado.

É necessário encarar estas mudanças de norte, com um espírito aberto e atento, observando os obstáculos, não com pânico e desespero, mas sim como fasquias a serem ultrapassadas ou contornadas. É fácil esquecer que nenhum parto é sem dor, nem nenhuma transição se faz esforço. Mudar não é um facto calmo, mas sim uma revolução sangrenta que regurgita todos os fantasmas, que faz rolar cabeças e reclama todas as gotas de sangue que pode, para que o que necessitava transmutar-se, mude de facto a sua realidade e essência, nem que estale, ou se quebre em mil minúsculos pedaços.

Faz anos que a minha vida sofreu um volte de face surpreendente. Dou-me conta que foi nesse ponto distante está na precisa bissectriz da minha história, da minha viagem no tempo. Foram duas metades tão diferentes e intensas, com tantas coisas de positivo e de negativo, mas tão equitativas na formação do que sou hoje. Foram duas etapas distintas dilaceradas com mais profunda ruptura física e intelectual, que me alicerçou para a minha caminhada mais entusiasta em que agora me encontro. Numa nova bissectriz, desta vez tão plena, consciente e doce, mesmo que escorra o sangue revolucionário.

3 – Um sorriso da Lua

Sinto que vou ganhando lentamente a liberdade através de um parto difícil e doloroso, mas que mesmo assim me proporciona a maior das felicidades. Por muito que custe, por muito que me seja angustiante, a força que me atraí para ser finalmente livre, encoraja-me e preenche-me.

Sou um ser que viveu nas sombras da noite demasiado tempo, agrilhoado aos mais fúteis e mais isolados conceitos de vivência, ansioso por uma luz, por uma escapatória de um labirinto da banalidade. Enjaulado no medo de ser aquilo que sou, enquadrado em mil formas de camuflagem.

Mas bastou um raio de luz da Lua para que todos os esconderijos e prisões começam a desabar, deixando-me pronto a fugir, ainda preso perante um milagre tão doce. Infelizmente, sou um prisioneiro quase que já esqueceu o que era a liberdade, e imagina que fora da sua prisão que não conseguirá sobreviver num mundo a que não estava habituado.

Mas quando se deseja, quando se vê esse sorriso da Lua, e se sente essa libertação, e se é alvo dessa dádiva imerecida, um prisioneiro pode ser livre. Estarei em breve livre das prisões graças à fé e amor purificador, à luz de uma Lua Cheia que me renova, preenche e sorri para mim.

2 – Na corda bamba

um receio que se vai vencer

Tenho que aprender a não sucumbir com alguma facilidade à pressões e sentir-me como se estivesse numa corda-bamba que abana, perdendo o equilíbrio que me sustenta à vida.

Culpo-me por não ter essa experiência, essa capacidade de me equilibrar quando o vento sopra mais forte e temendo a queda, forçando movimentos mais bruscos e perigosos de pânico, movidos a uma estupidez irreflectida.

Num futuro próximo vou com mais confiança e certeza, ignorar o abismo que se estende debaixo do arame, seguindo pé ante pé, sem pestanejar, seguro que nenhum vento, seja qual for a sua intensidade, não me fará precipitar numa queda fatal.

1 – Marés vivas

Com a chuva miudinha de uma manhã fria, tenho a sensação que o verão recebeu uma estocada mortal e está já ausente num céu de tom cinza que prende a luz, devolvendo apenas a claridade pálida.

Abruptamente no inicio do fim-de-semana meus diques transbordaram num manancial de emoções não esperadas e intensas. Não estava à espera por ser atingido por um relâmpago tão ofuscante, seguido dum terrível ribombar ensurdecedor. Os elementos internos entraram numa arrasadora tempestade, numas vagas encrespadas, num vento uivante.

O mar sacudiu-me e mergulhei na profundidade de um abismo negro, onde o salitre da renuncia enegreceu toda a luz que a custo me sustenta. As vagas de uma maré viva revoltada abalaram todos os diques, todos as barras, todos os portos seguros onde me refugio das tempestades, e para meu desespero, toda a negritude fétida das profundezas, das sombras tomaram conta de mim.

O desnorte momentâneo de um marinheiro frágil não se pode repetir como as marés intensas do fim de verão. Ora cheias sugando a terra costeira, ora baixas pondo a nu, o fundo lamacento sempre coberto por mar, essas são as marés de uma tempestade sempre anunciada, sempre natural. E as ondas fortes e intensas chocam com este cristal que se desfaz em mil pedaços logo envoltos em espuma e sugados na corrente.

Esqueci-me momentaneamente que a minha bússola não falha, nem que o meu farol jamais se apagará e por isso as marés são apenas um ponto de passagem de retorno infinito que sempre se repetiram e sempre se repitirão.

Estou algo alarmado e receoso. Tudo porque no meu âmago estou a pressentir que o meu futuro se modifica de forma abrupta. Todos os pequenos planos, todos os passos a curto prazo parecem não fazer mais sentido, num volte de face muito delicioso do destino, que me envolve e transforma.

Como se um vendaval se abatesse sobre mim tudo esvoaça em meu redor, sem que eu consiga discernir do que se trata. É rápido como o vento quente que rodopia à minha volta e me abraça e sacode numa nova sensação. Páginas do meu diário esvoaçam por preencher roçando o meu corpo, circundando-me e questionando-me se vou escrever novas passagens cheias de fulgor e mudanças. São páginas em branco, níveas e espessas, que numa coluna de redemoinho se cruzam e revolvem, questionando-me. Perguntam-me por novas passagens, novas encruzilhadas do destino, por um novo plano de existências, mutações e destinos.

O Sol brilha e como num sonho a luz invade todo um horizonte azul, pleno de serenidade e calor, enquanto o vento transporta as folhas numa espiral interminável dum branco intenso cortando o céu azul como uma faca de gume afiado.

E levando a pena, hesito olhando um tinteiro de ouro, repleto da tinta negra com que vou elevar-me com uma nova musa esplendorosa e generosa. Tanto por escrever, tanto por viver!

juntas

Recordo um texto de um manual escolar. Era ainda criança e o texto apesar de simples motivava alguma subjectividade poética em crescimento.O texto falava na noite escura e da borboleta que encontrou um luz forte irresistível, longínqua e tentadora.

A luz brincava e dançava, hipnótica chama pela borboleta que esvoaçou ao seu encontro, levada pela beleza da luminosidade no meio da escuridão. A borboleta estava confusa pois nunca tinha visto nada de tão belo na sua efémera vida e num impulso seguiu aquilo que de mais belo vislumbrava no negro da noite.

Aproximou-se rapidamente num voo gracioso e à medida que se aproximava, rodopiava feliz, pois aquele branco amarelado subia de intensidade, apagando os resquícios de sobras e de negritude que imperavam na noite. Cada vez mais a luz da chama brilhava mais intensamente e o seu calor fazia-se sentir terno e acolhedor rompendo com o frio nocturno.

A borboleta feliz e ofuscada, já extasiada, não podia deixar de voar em direcção àquela sensação que a enchia de prazer, deslumbrada pelo brilho cintilante e pelo calor que emanava a chama.

O texto terminava, não me recordo concretamente como. Talvez a borboleta queimasse suas delicadas asas nas chamas da vela, talvez louca insistisse em embater no vidro do candeeiro num frenesim de demência. Prefiro pensar que a bolboleta mergulhasse na luz, embebida em prazer, abraçada pelo branco e o calor que emanaria também. A borboleta tornar-se-ia também essa luz, essa chama que a atraiu tanto.

a visão do Hubble sobre Marte

Marte é o arauto da revoluções, ele evidencia a força e a energia possantes e quase inesgotáveis mas sem a cadência positiva de algo construtivo. Marte, tal como na mitologia latina, é o deus da Guerra, fulgurante e impiedoso com seus inimigos num campo de batalha, capaz de um enorme poder.
Infelizmente o seu poder e energia nem sempre são equilibrados, caindo muitas vezes na cegueira e na ansiedade para obter os despejos da batalha. E uma força enorme mas nem sempre lúcida.
Transpiro, cansado mas batalhador. Talvez seja influência de Marte.